JOANA CAMANDAROBA
Mesmo não sendo natural de Xiquexique, Joana Camandaroba é nordestina, barranqueira do Rio São Francisco e filha da vizinha cidade da Barra. Mantém fortes laços afetivos e familiares com Xiquexique (BA) em face de ali ainda residir alguns parentes e também pelo fato de ter sido professora de todas as mulheres xiquexiquenses que estudaram no Colégio Santa Eufrásia da Barra. Emérita educadora durante 40 anos ininterruptos, tendo saída da sala de aula aos 80 anos de idade, mesmo assim não parou de difundir cultura pela região que sempre valorizou o seu magistério, através dos vários livros que escreveu nesses últimos 15 anos. Recentemente foi protagonista da visita do Presidente Lula à sua cidade natal, ocasião em teve a oportunidade de entregar ao primeiro mandatário a sua mais recente obra "Barra, um retrato do Brasil" que discorre sobre a língua falada pelo Brasil, a língua do povo da Barra, a antropologia do povo, dos brejos, usos e costumes e demais assuntos relacionados com a nossa região sanfranciscana. Por tudo isso, sinto-me no honroso dever de registrar no Blog XIQUEXIQUE a entrevista que a ilustre Mestra concedeu à Terra Magazine.
PS.: Após a postagem desta matéria recebi telefonema de uma leitora informando que a Mestra D. Joana Camandaroba é xiquexiquense pois nasceu na Fazenda Utinga, de propriedade do seu genitor, situada no município de Xiquexique. Na oportunidade solicitou que fosse feita a retificação. Está feita.
No entanto, o fato de ser natural de Xiquexique, não desmerece a nobre Barra, pelo contrário, pois foi naquela cidade que D. Joana Camandaroba se educou e adquiriu todas as bases que até hoje amparam o seu vasto conhecimento. Foi alí, também, que D. Joana exerceu a maior parte do seu magistério e irradiou para todo o País, quiça para o mundo, as informações da sua vasta cultura. Parabéns Barra por ser o berço escolhido por tão importante senhora.
A seguir, a íntegra da famosa entrevista.
T M - Que idade tem a senhora?
J C - Tenho noventa e cinco anos, três meses, vinte dias e, neste momento, vinte horas, meu filho.
TM - Que livro a senhora entregou ao presidente Lula?
JC - Um dos quatro que escrevi, este com o padre Arlindo Itacir Batistel, é o "Barra, um retrato do Brasil".
TM - Sobre o que é o livro?
JC - Sobre a língua falada pelo Brasil, a língua do povo da Barra, a antropologia do povo, dos brejos, usos e costumes da região...
TM - A senhora é escritora?
JC - Fui professora por 40 anos. Parei de ensinar aos 80 e aí me deu um vazio. Preenchi com a literatura.
TM - A senhora foi professora do quê?
JC - De português, história... de quase tudo.
TM - Aqui em Barra?
JC - Ô meu filho, na Barra, em Formosa, em Santa Rita de Cássia, em Pilão Arcado, em Barreiras...
TM - A senhora sabe quanto alunos teve?
JC - Sei.
TM - Quantos?
JC - Todos da cidade, quase todos da região. Ensinei a todos. Ensinei tanto que não tive tempo para o amor, para namorar.
TM - O que a senhora disse para o presidente Lula?
JC - Pedi a ele que lesse a página 105.
TM - Por quê?
JC - Porque tem um texto belíssimo sobre a língua portuguesa, o português do povo. Língua que a gente esquece, a família e o povo esquecem.
TM - E por que esse livro e para o Lula?
JC - Porque ele é amigo do povo, se sente do povo e o povo se vê nele. Ouvi o discurso do presente, estava lá, senti isso nele, nos olhos dele, e nos olhos do povo.
TM - O que a senhora ouviu no discurso dele?
JC - Ouvir o discurso dele foi ouvir o discurso do povo. É a mesma coisa.
TM - A senhora foi professora por 40 anos e defende o uso correto da língua. Ainda que se possa discutir essa questão da "correção", o próprio presidente cansa de se referir publicamente a erros que cometia e ainda comete ao falar...
JC - Não é responsabilidade dele...
TM - Por que não?
JC - Aquilo que se escreve na alma de uma criança nunca mais se apaga.
TM - E...?
JC - ...o Lula presidente ainda fala como escreveram na alma dele quando criança e por isso mesmo muito ainda não se apagou...
TM - E que língua do povo é essa?
JC - A língua de todos os tempos, a dos vaqueiros, a dos brejos, a das periferias das grandes e pequenas cidades, a língua dos brasileiros, do povo. O meu livro fala disso, fala disso, fala até do transporte de padiola.
TM - Como?
JC - Meu filho, até os carros chegarem aqui os doentes eram transportados em padiolas. Eram quinze, vinte léguas a pé até as cidades. Escrevi o livro com padre que é lá do sul, é filho de italianos e por isso não domina, mas ama, nossa língua. Escrevemos juntos.
TM - E fala sobre mais o quê?
JC - Dos nossos costumes, tradições, transportes, princípios, casamentos, homens, mulheres...
TM - O que o presidente disse para a senhora?
JC - Que eu sou a noiva dele que tem cem anos...
TM - A senhora tem filhos?
JC - Não fui casada, meu filho. Não tive tempo para o amor, para namorar. Passei minha vida, 40 anos dela, a ensinar as pessoas. Isso também é amar, embora de outra forma. Dediquei minha vida à educação e, depois que terminou, minha vida ficou vazia. Aí veio a literatura, escrever preencheu esse vazio.
TM - E qual o outro livro?
JC - É o "caminho do Cristianismo". Desde Roma, das catacumbas, sobre todos os papas, o Concílio Vaticano II e João XXIII, João Paulo II, tem até um pouquinho sobre esse Papa de agora. E tem também a história de Dom Luiz Cappio, o nosso bispo.
TM - Como e quando começa essa história?
JC - Dom Luiz chegou aqui no dia 20 de setembro de 1974. Ele e mais três frades. Veio da Vila Guilherme, lá em São Paulo, e quando chegou nós até pensamos que ele fosse Lamarca, que mataram aqui perto. Tinha gente que até pensava que era o Lamarca vivo de novo, e vestido de frade.
TM - E vocês sabiam quem era Lamarca?
JC - Ô meu filho, eu sabia! Mas o povo hoje também sabe que ele foi um mártir, foi morto pelo exército no mato, homem de grande coragem. Lamarca foi um mártir do povo e por isso estará no santuário que Dom Luiz Cappio vai fazer.
TM - Que santuário é esse?
JC - Um santuário com os mártires do povo. Lamarca, um José de tal que morreu lá em Barreiras.
TM - Sim, mas e o capítulo do livro sobre Dom Luiz Cappio?
JC - A irmã dele, de São Paulo, me deu muito sobre a história dele. Quando chegou aqui ele dormia no chão. A mãe mandava roupas que comprava na Itália e ele dava tudo para o povo. O bispo é um homem muito firme. Quando ele decide uma coisa não tem mãe, pai, Cardeal, nem o Papa consegue fazer ele desistir. Eu sou muito amiga do bispo, ele é um homem de grande valor, muito próximo do povo.
TM - Noto aí uma contradição. A senhora escreveu sobre o bispo, é amiga e admiradora dele, mas foi à recepção ao presidente Lula, abraçou-o, deu a ele um livro....
JC - Fui, e ainda fui muito bem arrumada.
TM - Foi? Como?
JC - De vestido amarelo, com muita jóia. Brincos de ouro, anel de brilhante, uma pulseira de ouro branco, um medalhão com uma efígie de um dos reis da Inglaterra, coisa muito antiga, comprei em uma viagem a Portugal. Tenho e coleciono coisas antigas, vou doar para que se faça um museu na Barra.
TM - A senhora tem muita coisa boa?
JC Muita história. Tenho duas arcas, cheias, que pertenceram às irmãs de João Maurício Vanderlei, o Barão de Cotegipe, a segunda figura do Segundo Império. Ele foi a favor das Leis do Ventre Livre, do Sexagenário, mas foi contra a Lei Áurea...
TM - Por qual razão?
JC - Ele disse à Princesa Isabel: "O Brasil não tem condições econômicas de suportar o fim da escravidão, a senhora libertará uma raça, mas perderá um trono". E a princesa respondeu: "Quantos tronos eu tivesse para dar pela liberdade humana eu daria".
TM - Onde a senhora aprendeu isso?
JC - Não aprendi, eu ensinei, por 40 anos. Está na história, nos livros.
TM - A senhora se considera de que raça?
JC - Eu sou mulata não, eu sou negra.
TM - Dona Joana, o Bispo chegou à greve de fome contra a Transposição do São Francisco. Então, como é que senhora foi lá receber a comitiva? E o bispo, onde estava?
JC - Fui, e muito arrumada, porque Lula merece. Já recebi muitos candidatos a governador em minha casa, até a presidente da República, mas Lula é o primeiro presidente, o primeiro Chefe de Estado que vem a Barra. E olha que Barra é muito antiga...
TM - Quem foi o candidato a presidente que esteve em sua casa?JC - Jânio Quadros. Se hospedou aqui em casa. Meu irmão, que é médico, aposentado, trabalhou e dirigiu coisas importantes por muitos anos no Hospital das Clínicas, tinha um uísque muito bom. Jânio bebeu quase tudo...
TM - E aí, o que aconteceu?
JC - Saiu zonzo daqui de casa dizendo "Até o Planalto". E ele foi para o Planalto mesmo, mas depois fez aquela bagunça lá e nos deixou a todos na mão...
TM - Deve ter tomado umas garrafas...
JC - Olha, meu filho, acho que foi isso mesmo.
TM - ACM esteve aqui?
JC - Esteve. Ele era inimigo, adversário, mas ficou amigo depois que trouxe pra ele um remédio.
TM - Que remédio?
JC - Golbery, o general Golbery, me deu um remédio e pediu que eu mandasse pra Antônio Carlos quando chegase à Bahia. Fiz isso...
TM - Remédio pra quê? E onde a senhora encontrou Golbery?
JC - Pra uma dor que ele tinha na garganta e não sarava. Acho que foi de tanto gritar quando ele foi nomeado. Fui a Brasília pedir dinheiro para que as escolas não fechassem, fui ao Congresso, e depois encontrei Golbery que me pediu para entregar o remédio. Antônio Carlos tinha seus defeitos, nós sabemos, mas tinha uma grande qualidade, a gratidão.
TM - Então a senhora foi ter com Lula porque gosta dele e...
JC - Eu gosto e o povo gosta.
TM - E Dom Luiz Cappio?
JC - Não sei, pergunte a ele. Mas sei que ele me disse que agora não é mais Lula, é Luiz Inácio. Mas acho que ele ainda deve gostar.
TM - Estão dizendo que tiraram a rádio comunitária da igreja do ar para que não se fizesse críticas ao presidente...
JC - Não é isso não, é o contrário. E antes deixa eu te dizer uma coisa: Dom Benjamim Capelli tem oitenta e tantos anos. É um homem muito bom, quase um santo. Cuida da saúde do povo, cuidou sempre dos leprosos, já nem tem mais leprosos aqui na Barra. E ele foi ao aeroporto receber Lula, abraçou Lula, de quem ele gosta muito.
TM - E como foi no aeroporto? Não estávamos lá.
JC - Tinha duas, três mil pessoas, Lula quebrou o protocolo, falou e abraçou um bocado de gente do povo.
TM - Mas e a história da rádio...?
JC - Meu filho, o problema não é o Lula, que é amado pelo povo, nem o governador...
TM - O Jaques Wagner?
JC - Isso, ele é bem bonitão, sabe? É simpático, o povo gosta muito dele também. Acho que até porque sabe que ele também gosta de uma pingazinha, como o povo também gosta...
TM - ...se o problema não é Lula, se não é o Jaques Wagner, então qual é o problema?JC - O problema aqui, meu filho, é o Geddel.
TM - O ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima? Mas por que ele é o problema se as decisões sobre o rio são tomadas acima dele?JC - Sim, mas ele se dizia contra a Transposição... aí arranjou esse emprego bom e ficou a favor. Mas isso não foi o pior, não...
TM - O que foi, então?
JC - Ele foi muito deselegante com o bispo, e o povo gosta do bispo. Ele foi mal comportado, não é flor que se cheire. Ou, como diz o povo daqui, Geddel não é boa abelha, não!
TM - Mas, apesar disso tudo, a senhora foi ao Lula, deu um livro de presente a ele, o bispo ficou em silêncio e a rádio da igreja também.JC - Quem foi que disse que o bispo ficou em silêncio?
TM - Ninguém ouviu uma palavra dele, tiraram a rádio do ar, dizem que foi o governo, ele nem ficou na cidade, não protestou...
JC - ...(Gargalhadas) Meu filho, quem tirou a rádio do ar, rádio que é da igreja, foi o bispo mesmo, para não ter que falar da festa. E o bispo falou o dia inteiro, a cidade inteira ouviu, de tempos em tempos, o dia todo...
TM - Mas falou onde?
JC - Falou com os sinos da igreja...
TM - Como?
JC - Falou com os sinos, eles tocaram o dia todinho.
TM - A senhora me explica melhor, por favor, Dona Joana?
JC - Meu filho, os sinos tocaram, dobraram o dia inteiro...
TM - Dobraram o quê?
TM - (Gargalhadas) ...Dobraram a Finados. Teve festa pro Lula, pro governador, mas os sinos daqui da Barra dobraram a Finados o dia inteiro. Para o Geddel.
Terra Magazine
Bob Fernandes