domingo, 3 de outubro de 2010

O CRONISTA GUARABYRA

GUTEMBERG NERY GUARABYRA FILHO


O grande cantor e compositor Guarabyra, da dupla Sá e Guarabyra, é baiano das margens do Rio São Francisco, nascido em 20.11.1947.
Durante muitos anos residiu em várias cidades ribeirinhas do Velho Chico pelo fato de ser filho do Pastor Gutemberg Nery Guarabyra, da religião Batista.
Entre essas cidades figura Xique-Xique (BA), onde o seu pai fundou a Igreja Batista e ali residiu por alguns anos.
Daí a sua paixão pelo Rio São Francisco, sendo autor entre outras de "Sobradinho", que desde 1977 é sucesso em todo o Brasil.
Quando morou em Xique-Xique (BA), lá pela primeira metade da década de 1950, a cidade era muito pequenina e a energia elétrica fornecida por um caldeira a vapor, funciona apenas das 18 às 22:30 horas.
É dessa época a crônica inédita de Guarabyra, que me foi enviada pela, também conterrânea, Maria Rita de Carvalho Hefti, filha do Sr. Marinho Pereira de Carvalho, grande empreendedor xiquexiquense e que tenho a subida honra de publicar no Blog XIQUEXIQUE.
Nessa crônica ele fala da brincadeira dos meninos de entoar uma música, misturada com assobio, destinada a "chamar o vento". Ele, morando na Avenida J.J. Seabra, juntava-se à noite com os amigos da sua idade, na porta da sua casa, para "chamar o vento".
Vejam como ele conta essa brincadeira.
"VAMOS CHAMAR O VENTO
GUT GUARABIRA

"Vamos chamar o vento..." Braços estendidos, corpos bem esticados, em pé e de frente para o fim escuro da avenida silenciosa e deserta
(Av. J.J. Seabra), esperávamos o vento de olhos fechados, concentrados. Minha mãe (D. Juracy Sampaio Guarabyra), da porta de casa, cantava o verso e comandava a última brincadeira da noite. Eu e meus amigos aguardávamos a brisa. Às vezes, ela vinha. Quando não chegava, minha mãe mudava a letra da canção de Caymmi para "Vamos escovar os dentes..."
Era o sinal de boa-noite. Eu e a garotada reclamávamos. Alguém ainda achava que havia escutado um rumor de vento. Esperávamos e nada. Sem mais desculpas, nos despedíamos. Já dentro de casa, a pergunta era sempre a mesma: "Por que não podia dormir mais tarde?". A resposta também era a mesma de sempre: "Porque a luz acaba às dez e meia". E daí? — eu pensava. Vai ver que, no escuro, o vento até apareceria logo.
O vento, nas vezes em que vinha, era uma festa. Surgia do nada. A característica dali na época da seca era, ou ausência total de ventos, ou brisa forte. Não tinha meio-termo. Certas vezes, soprava tão bravo que virava rodamoinho. Movimentado-se em círculos, erguia um cone de areia que cobria a luz amarelada dos raros postes, alvoroçava nossas vidas e, depois, ia arrefecendo até nos abandonar por completo. O vento da noite, não sei porquê, quase sempre começava tarde. Um mistério insolúvel e detestável, visto que, se nos fizesse companhia mais cedo, jamais iríamos dormir sem antes ter sentido a sensação de vôo, que nos causava ao nos atingir de braços abertos, de frente para o escuro do fim da avenida.
Isso era em Xique-Xique. Porém, descendo no mapa e subindo no rio — o São Francisco desce para cima do mapa —, na região das cidades de Piranhas, Pão de Açúcar e Penedo, depois do cânion de Paulo Afonso, era diferente. Ali, jamais falta vento. Os barcos, de velas sempre enfunadas, singram com velocidade, batendo forte nas ondas formadas pelos pés-de-vento. Exigem perícia e arrojo dos velejadores. Dizem que aquela arte de navegação é herança dos holandeses da invasão. Essas embarcações, quando vistas de frente, com as duas velas — uma à proa, outra à popa — estendidas para lados opostos, parecem mãos imitando asas de pássaros.
Outro dia, ouvi o navegador Amyr Klink dizendo que a história da navegação, no Brasil, não é considerada cultura digna de nota. E que, quando se procura patrocínio para eventos de pintura, música, restaurações de obras arquitetônicas antigas, e outras iniciativas reconhecidas como culturais, ele é possível. Para se reconstituir a história da navegação brasileira, da construção naval, porém, não se consegue verba alguma. Nem ouvem. Ora, até por ser um dos maiores navegadores do mundo, deveriam ao menos escutá-lo. Ao fim do depoimento, afirmou que está acostumado a essas dificuldades. Todavia, todas as vezes em que parte, ao menos deve saber que nós, brasileiros, torcemos com fervor para que bons ventos o acompanhem.
No Sul, estão ocorrendo rajadas poderosas. Não sei se sempre existiram, ou se nós é que estamos tomando ciência delas apenas agora, devido à integração dos meios de telecomunicações e até mesmo pela maior densidade demográfica da área em que estão agindo. Na televisão, vi uma vítima de um desses golpes de vento afirmar que de nada adianta tentar manter-se em pé, nessas ocasiões, pois a pessoa é arrastada e sai voando, planando.
Mas não quero descambar nossa conversa para o cenário das tempestades e tragédias. Prefiro recordar os bons momentos marcados por benfazejas e suaves brisas. No máximo, citar as virações vigorosas que empurram as embarcações com energia. Um dia, em cima de um penhasco sobre o rio São Francisco, na alagoana cidade de Penedo, cismava com a velocidade dos barcos que via percorrendo as águas e com a destreza daqueles pilotos. Acabei convencendo a tripulação de um barco a empreitar comigo uma viagem rio acima. Durante cinco dias, até que as pedras de Paulo Afonso impedissem nossa passagem, navegamos o rio, para mim sagrado. Foi um sonho perfeitamente realizado. Cinco dias de navegação, história e emoção inesquecíveis.
Minhas lembranças às vezes navegam assim, levadas pelos ventos mesmo em dia de calmaria total. São horas em que, mesmo com a alma ancorada, as saudades se põem em movimento. "Movimento dos barcos... Movimento..." Lembro a canção de Macalé com versos de Capinam. A tudo move a brisa, o vento. É a própria manifestação do enigma da natureza. O sopro da vida que nos acompanha desde a primeira vez que o ar nos invade os pulmões até o derradeiro suspiro.
Cá estou eu de novo desviando a conversa para assunto sinistro. Este ano, fiz 54 anos de vida de viração e movimento. Deve ser por isso que a crônica segue tão nostálgica. Sinal dos ventos. Digo, dos tempos. Mas só queria dizer que o ar se deslocando, mexendo com os cabelos, com as velas, com as folhas, com o mundo, é vida. Se me interrogassem, como perguntaram a Manuel Bandeira, o que mais queria além de versos e mulheres, como está descrito no poema Estrela da Vida Inteira, responderia, em vez de vinho, "Vento!... O vento que é meu fraco". E, no lugar de "Evoé, Baco!", evocaria a canção da infância: "Vamos chamar o vento...". E me deixava transportar para a porta de casa, rezando para voar e para que fosse eternamente levado."

PS.: Pelo fato de ter tomado conhecimento da crônica acima por intermédio da conterrânea Maria Rita, não poderia publicá-la sem o consentimento pessoal do autor, pelo que, via internete, além de atender ao meu pedido fez importantes referências a Xique-Xique, que considero como sua terra natal tal o carinho demonstrado. Abaixo, a autorização do autor Gutemberg Guarabyra.

"Olá Juarez;

Rapaz, você sofre do mesmo mal que eu. É impressionante ter saído de Xique-Xique tão pequeno e mesmo depois de morar em tantas cidades diferentes, ter feito tantos amigos outros, passar por tantas aventuras diversas, continuar acordando na velha praça do Pirulito.
Se penso em escrever um livro, Xique-Xique é o primeiro cenário. Se penso em rabiscar uma crônica, lá vem Xique-Xique de novo.
O cais, a igreja, a prefeitura, o Gringo, Cazuzão, o cancelão do campo. Tudo presente na memória como se houvesse saído de lá anteontem.
Fico honrado por você publicar a crônica. Envio inclusive uma outra que também fala de Xique-Xique embora sem citar nominalmente a cidade. Falo sobre um lugarejo chamado Pedrinhas, que nem sei se existe mais. Na crônica, chego até lá depois de discorrer sobre meus tempos de cidade grande. Acho que das minhas crônicas é a que melhor reflete aquilo que digo lá em cima. Que por mais que esteja longe e que por maior que seja o tempo em que saí de Xique-Xique, jamais a esqueço.

Um super abraço.

Gut Guarabyra "



Um comentário:

  1. Juarez, fiquei emocionado e feliz lendo essa cronica do Guarabyra, eu não cheguei a conhece-lo nessa época, pois sendo mais jovem, apenas tive conhecimento da sua passagem por Xique-Xique, inclusive a casa onde ele morou, tambem da sua cidade natal, que é a Barra. O Guara faz parte do meu orkut e ele tem no seu album, uma foto da Barra, onde ele escreveu: minha cidade natal, e outra de Xique-Xique, com dizeres: minha infância, achei muito legal isso. Eu sou fã da dupla Sá e Guarabyra, por sinal, me influenciaram muito na minha profissão de músico. Parabéns pra voce e muito sucesso pro nosso quase conterrâneo Guarabyra.

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