sábado, 23 de janeiro de 2010

CRÔNICA: O GINÁSIO E O BOLSA FAMÍLIA

O GINÁSIO SENHOR DO BONFIM E O BOLSA FAMÍLIA
















Título esdrúxulo dirão uns, desconexo, dirão outros, mas a relação é verdadeira e retrata a postura da elite xiquexiquense em relação a essas duas realidades.
Em 03 de outubro de 1954, o Sr. José Peregrino de Souza, originário da então Vila de Tiririca, atual cidade de Itaguaçu da Bahia, foi eleito Prefeito de Xiquexique para um mandato de 4 anos (07.04.55/07.04.59), após uma renhida disputa eleitoral onde o opositor era o Sr. Felinto Pires Maciel do então distrito de Central, atualmente cidade de Central.
Talvez levado pela própria vivência na então vila de Tiririca que contava apenas com o curso primário, e esse, provavelmente, deveria ser o seu grau de instrução, a prioridade do prefeito eleito, quase uma obsessão, foi a criação de um Ginásio Municipal em Xiquexique, em cuja tarefa lançou-se com todas as forças a partir do primeiro dia de governo municipal.
Até meados da década de 1950, Xiquexique possuía apenas o Curso Primário e mesmo assim sem atender o total da demanda vez que possuía apenas um equipamento estatal, as “Escolas Reunidas Cézar Zama” conhecido como o “Prédio”, com apenas 4 salas de aulas, funcionando nos turnos matutino e vespertino. Concluir o curso primário no Cézar Zama era um privilégio para os poucos que conseguiam uma matrícula naquela escola pública. Grande número de alunos era atendido em escolas particulares de professores leigos que ministravam aulas nas próprias residências e se preocupavam apenas em ensinar escrita, leitura e as quatro operações de aritmética.
Dentre os sortudos que conseguiam o diploma do curso primário no “Prédio”, pouquíssimos tinham a ventura de complementar os estudos com o Curso Ginasial e raros eram os que concluíam o curso secundário (científico ou clássico) e ingressavam em uma faculdade. Essa carência era função da pobreza que grassava na cidade. Somente uns poucos financeiramente privilegiados tinham condições de colocarem filhos e filhas para estudar fora de Xiquexique num colégio interno. Não obstante, alguns jovens estudantes tiveram esse privilégio em face da obtenção de bolsas de estudos que esteve em moda naqueles anos e que foram prodigamente conseguidas pelos políticos locais e distribuídas por muitos alunos e alunas que concluíam o primário no “Prédio”. Eu, por exemplo, fui beneficiado com uma bolsa federal de estudos que me permitiu concluir o ginásio e o primeiro científico interno no Colégio Antônio Vieira em Salvador. Enquanto os meninos que concluíam o primário davam preferência ao Colégio Marista, da cidade do Senhor do Bonfim ou de Salvador, as meninas, na quase totalidade estudavam na cidade da Barra, no Colégio Santa Eufrásia onde se formavam em Professoras Primárias.
A verdade é que a grande maioria dos jovens que concluíam o Curso Primário no “Prédio” permanecia em Xiquexique, por não conseguirem bolsas de estudos e os pais não terem condições financeiras para bancar os gastos com estudos dos filhos em outras cidades. Eram esses jovens que ficavam reféns do desemprego, dos subempregos e às vezes até do trabalho semi-escravo, nas residências ou nas casas comerciais da elite urbana.
Todos nós que nascemos em Xiquexique, sabemos como funcionava o trabalho quase escravo realizado pelos “empregados” domésticos. As famílias ricas da cidade se especializaram em “criar” jovens adolescentes pobres, muitas vezes próprios afilhados de batismo, filhos da periferia da cidade ou trazidos das suas fazendas, que eram destinados a todo tipo de trabalho doméstico, tais como cozinheiras, copeiras, arrumadeiras, babás, lavadeiras, passadeiras e outros trabalhos congêneres. Muitas dessas jovens que dedicaram toda uma vida a cuidar da casa e dos filhos da família que as “criaram” chegaram à velhice sem nenhuma assistência médica e totalmente desamparadas não obstante muitas receberem denominações domésticas, tidas como afetivas, de “mãe preta”, “mãe de leite”, etc.
Os meninos “criados”, a partir dos 15 anos ou até menos, eram encarregados de abastecer a casa de água apanhada na beira do rio. Nesse tempo não tínhamos água encanada e havia uma quantidade muito grande de jumentos que, guiados por esses meninos trafegavam das residências ricas para a beira do rio e vice versa, carregando 4 barris de madeira cheios de água, até que a caixa d’água e outros recipientes da casa estivessem abarrotados com o precioso líquido. Concluída a tarefas de abastecedor de água, o jovem “aguadeiro”, como era conhecido, ainda tinha que administrar a vida do jumento cuidando para que comesse um bom capim no final do dia.
Todos, meninos e meninas, cresciam como “crias domésticas” e passavam a vida inteira integralmente dedicados àquela família que, em troca dava-lhe apenas o alimento diário, consumido na cozinha, roupas e sapatos usados pelos filhos e filhas e, para dormir, tinham direito a uma esteira, de palha ou tabua, estendida num quarto dos fundos da casa, onde passavam a noite. De um modo geral cresciam analfabetos ou semi-alfabetizados sabendo apenas “ferrar” o nome, para poderem votar.
Por tudo isso, a notícia de que o novo Prefeito, vindo da Tiririca, iria construir um Ginásio Municipal até o final da década de 1950, causou um profundo estresse nas famílias ricas, pois isso iria democratizar o ensino e os jovens que eram destinados ao trabalho servil como meio de sobrevivência teriam, com isso, oportunidade de estudar e, vejam só, se formarem até em professores primários, profissão exercida por suas filhas graduadas pelas freiras na cidade da Barra. Como iriam arranjar cozinheiras, copeiras, aguadeiros, todos analfabetos e dispostos a trabalharem mais de 12 horas por dia a troco de comida e vestuário usado? Absurdo, querer que todo mundo estude. Quem vai trabalhar? Ouvi muitas vezes frases que diziam “Agora, com o Ginásio, ninguém mais vai querer trabalhar como empregada doméstica ou aguadeiro”.
A insatisfação da elite xiquexiquense repercutiu e foi concretizada na Câmara de Vereadores da cidade logo que o Prefeito José Peregrino enviou àquela casa, em regime de urgência, o projeto da criação do Ginásio, ocasião em que 7 dos 11 vereadores se pronunciaram contra o empreendimento, posição que paralisou o Projeto por mais de três anos nas mãos dos vereadores. Antevendo que pelos caminhos normais não conseguiria criar o Ginásio Municipal, o Prefeito resolveu negociar com os vereadores e políticos do então distrito de Central, no sentido de apoiá-lo na aprovação do Projeto do Ginásio e em troca ele os ajudaria no projeto de emancipação de Central. Fechado o acordo começou um trabalho junto aos deputados da região e em agosto de 1958 o distrito de Central foi emancipado de Xiquexique e transformado no Município de Central. Correspondendo ao acordo firmado a Câmara de Xiquexique, cuja maioria era de vereadores eleitos pelos Distritos, aprovou, em 1958, quase no apagar das luzes da gestão do Prefeito José Peregrino de Souza, o projeto de criação do Ginásio Municipal Senhor do Bonfim, que estava engavetado havia mais de três anos. Dessa forma, contra toda a vontade da parte da população de Xiquexique que temia perder o concurso da mão de obra quase escrava, o Ginásio Municipal Senhor do Bonfim foi inaugurado no dia 1 de março de 1959, e instalado num imóvel alugado, situado na Rua Monsenhor Costa, tendo começado as aulas no dia 02 de março de 1959.
A título de justiça deve ser registrado que o Prefeito José Peregrino contou, na sua luta pela instalação do Ginásio, com a importante e valiosa ajuda do Dr. Sólon Figueiredo, xiquexiquense recém bacharelado em Direito que além dos bons relacionamentos em Salvador que lhe permitia livre trânsito na Secretaria de Educação, contava com o trunfo de ter sido colega de faculdade do Dr. Luiz Viana Neto que mais tarde viria a ser importante político baiano.
Nesses últimos 50 anos dezenas de escolas públicas de primeiro grau foram criadas em Xiquexique e as salas de aulas foram dirigidas por professores e professoras formadas pelo agora Colégio Municipal Senhor do Bonfim que, além de suprir mão-de-obra para o magistério forma cidadãos e cidadãs qualificados para os diversos empregos formais e dignos criados pelo comércio, pequenas indústrias e serviços públicos.
A exploração dos domésticos ainda é exercida pela classe dominante de Xiquexique que continua pagando menos que o valor do salário mínimo e não cumpre as demais obrigações trabalhistas. Não obstante isso já foi um grande avanço, pois, em face dos serviços prestados pelo Ginásio de Xiquexique, desde o longínquo ano de 1959, desapareceu o trabalho servil e quase escravo que era mantido pelos empregadores domésticos.
Em visita que fiz a Xiquexique em julho de 2009, também vi e ouvi, meio século após a inauguração do Ginásio, pessoas da classe dominante que, revoltadas com o BOLSA FAMÍLIA, alegavam que essa “demagógica” distribuição de dinheiro instituída pelo Governo Federal estava estimulando a preguiça dos trabalhadores e por isso “não mais se encontravam pessoas dispostas a trabalharem nas casas de famílias como domésticas e nem nas propriedades cuidando das criações e das cercas das fazendas”. Reclamação semelhante à de 1959 quando da criação do Ginásio em Xiquexique.
“O Bolsa Família é um programa de transferência direta de renda que beneficia famílias em situação de pobreza (com renda mensal por pessoa de R$ 70 a R$ 140) e extrema pobreza (com renda mensal por pessoa de até R$ 70), desenvolvido pelo governo federal, desde que os beneficiários cumpram algumas regras, tais como manter as crianças e adolescentes em idade escolar freqüentando a escola e cumprindo os cuidados básicos em saúde, ou seja, estar em dia com o calendário de vacinação, para as crianças entre 0 e 6 anos e também com a agenda pré e pós-natal para as gestantes e mães em amamentação. Tem como objetivo assegurar o direito humano à alimentação adequada, promovendo a segurança alimentar e nutricional e contribuir para a erradicação da extrema pobreza e para a conquista da cidadania pela parcela da população mais vulnerável à fome”.
Pelo objeto do programa constata-se de imediato que atende apenas as pessoas que estão no limiar da miséria, ou seja, exatamente aquelas com perfil apropriado para o serviço doméstico semi-escravo, aquelas pessoas que trocam o seu trabalho por um prato de comida, uma roupa velha ou um par de sapatos usados. Como essas pessoas, a partir do Bolsa Família, dispõem de um numerário que mesmo insignificante permite a aquisição de gêneros alimentícios e vestuários, modestos mas novos, não mais se submetem ao trabalho servil que por muitos anos foi exercido nas casas de família e nas fazendas, por seus pais e avós.
Deve ser reafirmado aqui, que o Bolsa Família não impede e nem desmotiva que pessoas por ele assistidas desmereçam oferta de emprego digno e legal. Qualquer pessoa aceitará de bom grado, mesmo sabendo que será excluinda do Bolsa Família, um emprego doméstico ou mesmo no campo, desde que o empregador se disponha a, mensalmente, pagar pelo menos o Salário Mínimo e as demais obrigações trabalhistas, tais como férias, 13º mês, FGTS, INSS, salário família, descanso semanal, etc, que são as mínimas obrigações exigidas em lei. É óbvio que esses empregadores não mais encontrarão pessoas para serem exploradas como acontecia rotineiramente antes do Bolsa Família. Mas, com certeza, facilmente contratarão empregados que de bom grado estarão executando as tarefas domésticas e do campo por um salário legal, mesmo o mínimo, mas com todos os encargos trabalhistas.
Não culpemos o Bolsa Família, pois esse instituto não é causa e sim conseqüência. Ele existe para corrigir uma grave distorção social onde os nossos irmãos mais pobres, levados pelas mais elementares necessidades biológicas, eram obrigados a trabalharem como escravos para poder sobreviver. Cumpramos, pois, a nossa obrigação social e cristã dando empregos dignos e legais aos nossos semelhantes menos favorecidos caso precisemos dos seus serviços nas nossas residências ou nos nossos imóveis rurais. Temos obrigação de acompanhar a evolução dos tempos tanto na parte social quanto religiosa.
O BOLSA FAMÍLIA É UM DIREITO DOS CIDADÃOS BRASILEIROS MENOS FAVORECIDOS NA REPARTIÇÃO DO PRODUTO NACIONAL.











































































































Um comentário:

  1. Não precisas convencer ninguém da necessidade do bolsa família, nem da famigerada exploração de pessoas que vivem no sertão da Bahia. Apenas acho, o valor do bolsa família de uma miséria absoluta, uma esmola, uma indignidade, que você deve adorar quase como um fetiche (R$ 140 reais por mês por família!! Quáquáquá) porque sai das barbas de um governo que deves prezar, que é o do Lula, e que também se pode abominar pela corrupção, pela miséria moral e pela mediocridade. Pior que isso, só o salário dos professores, mas Educação é um assunto que qualquer lulista deveria se envergonhar, daí porque buscar desesperadamente exemplos pouco edificantes do passado.

    O serviço doméstico não é de "quase escravidão", é de escravidão mais deslavada mesmo, ainda hoje. Minha família praticou isso em Central até o dia em que alertei. E eu duvido que você que escreveu o artigo não tivesse sido beneficiado por essa realidade e covardemente ou hipocritamente vem apontar o dedo para os outros.

    Você bem que economizaria um discurso tão chinfrim. Falar de elite dominante em Xique-xique é transpor para uma realidade diferente, diferenciada, um discurso político e ideológico canhestro. Em nossa terra, o problema é justamente o fato que não existe elite: nem econômica, nem intelectual, nem espiritual. Você viveu e eu vivi o esquema de completa exploração das famílias por outras famílias, da mulher pelo homem, dos filhos pelos pais, da esposa pelo marido, dos mulatos pelos brancos, dos negros pelos mulatos , dos analfabetos pelos alfabetizados, dos ateus pelos religiosos, dos protestantes pelos católicos.... Falar em luta de classes num ambiente desses... bom, deixa pra lá.

    A história da emancipação da Roça de Dentro está um tanto estranha. Até porque, especialmente naquela época, duvido que houvesse necessidade da Câmara aprovar projeto para construção de escolas. A emancipação ocorreu contra a vontade dos centralenses e por meio de um fraude eleitoral descarada (a história é ótima e envolve até o uso de uma "rapariga" para distrair os guardas que cuidavam das urnas). Ao que consta coronel Felito Maciel mandou votar contra, mas houve um grupo de jovens que odiava o coronel e preparou a fraude.

    Estive no ano passado em São Luiz e Belém, Súsie. Dois lugares lindos, de um povo excepcionalmente hospitaleiro e educado. Pois bem, essas duas cidades há 200 anos foram algumas das principais metrópoles do mundo, enquanto São Paulo não passava de uma fazenda encharcada. Bem assim, Xique-Xique teve alguma importância no passado.

    O mundo girou, a lusitana rodou e hoje Pará e Maranhão nos enchem de vergonha e pavor. Peça a um marxista para explicar o fenômeno e nem ele vai se sair com essa história tosca de que as elites dominantes locais não quiserem educar seu povo, mesmo quando surgia algum governante bem intencionado querendo trocar emancipação municipal por voto em escola.

    Eu li o texto, enviado por minha prima, indignado com todo esse discurso em defesa de uma esmola estatal que tende a transformar os sertanejos em esmolés ainda mais dependentes dos favores alheios.

    Uma Bolsa Família de menos de R$ 1.000,00 no sertão é inaceitável.

    Att,

    Marcone Gonçalves

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