segunda-feira, 29 de março de 2010

Crônica: Os Penitentes de Xiquexique (BA)

OS “PENITENTES” DE XIQUEXIQUE

Os “penitentes”, homens que se autoflagelavam na Semana Santa, existem desde muito tempo nas cidades ribeirinhas do Rio São Francisco, mas parece que Xiquexique (BA) foi uma das cidades onde mais ocorreu essa prática. Provavelmente desde o final do sec. XIX, na Semana Santa, acontecia na cidade um evento que, apesar de se repetir todos os anos, deixava a comunidade local com grande expectativa e curiosidade. Eram as “lamentações”, ritual característico da idade média, realizadas perto da meia-noite, que tinha como principais protagonistas os “penitentes”, representados por pessoas do povo, pescadores e agricultores que, durante a Semana Santa submetiam-se a uma auto- flagelação como sacrifício pelo perdão dos pecados e certeza do ganho da felicidade no céu. A auto-flagelação a que se submetiam os "penitentes" era precedida pelas "lamentações" gurpos formados principalmente por mulheres que à noite e em grupos, dirigiam-se para o cemitério e lá chegando iniciavam um rito que tinha como objetivo salvar as almas do purgatório. Entoavam lúgubres cantos sacros que ecoavam pela silenciosa noite xiquexiquense e eram ouvidos em quase toda a pequena cidade. Entre essas cantigas, tinha uma que sempre estava presente em todas as "lamentações" e assim dizia: "Senhor meu Deus, tenha piedade de mim" ; "Senhor meu Deus, pequei Senhor, tenha piedade de mim"; "Senhor meu Deus, pequei Senhor mas pelo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo tenha piedade de mim".
O ritual do auto-suplício consistia em retalhar as costas com pequenas e afiadas navalhas amarradas a uma tira de couro que eram jogadas de lado e por sobre os ombros, num movimento característico que consistia em movimentar o tronco para frente e para baixo permitindo, assim, que a lâmina da navalha atingisse por inteiro as costas. Para facilitar e tornar eficaz a tarefa de se cortar, os “penitentes” cobriam o corpo da cintura para baixo, com brancos lençóis e enrolavam a cabeça com panos da mesma cor, deixando o torso a descoberto. Antes de iniciarem a auto-flagelação açoitavam as costas com galhos de cansanção e de faveleira, uma planta abundante e nativa no Município que tem nos espinhos das folhas um substância tóxica que ao atingir a pele e causar intensa dor, a torna relativamente insensível e anestesiada. Durante a flagelação, entoam cânticos religiosos e rezam pelos mortos, principalmente as almas do purgatório, por assim entenderem que as faltas graves, suas e dos que já morreram, serão perdoadas após o sacrifício.
Os “penitentes” apesar da inexistência de um estatuto ou regulamento se arvoravam de participar de uma sociedade secreta e, na realidade era, pois a imensa maioria do povo não tinha idéia de quem estava no meio do mato, à meia noite, se cortando. A “lamentação” propriamente dita era formada de dois contingentes: o grupo das “alimentadeiras” ou rezadeiras, composta de homens e mulheres, que se encarregavam de fazer as orações pelos que já morreram e durante a procissão chacoalhavam um instrumento de madeira e ferro chamado de matraca e o grupo dos “disciplinadores” ou “penitentes”, exclusivo de homens, que durante a Semana Santa se martirizam com chicotes de couro tendo na ponta afiadas lâminas de ferro, usadas para retalhar as costas.
As “lamentações”, tinham início na quarta feira de cinzas quando todos os “penitentes”, veteranos e noviços, se apresentavam para o sacrifício da auto-flagelação e semanalmente continuavam com o rito, até a Sexta-feira da Paixão, data em que, novamente, todos os auto- flageladores estavam presentes.
Durante a Semana havia um revezamento dos “penitentes” para que os cortes cicatrizassem e pudessem sofrer nova flagelação. Era um período de descanso quando esses "penitentes" apenas acompanhavam a “lamentação” no grupo das rezadeiras.
O ritual das “lamentações iniciava-se, já perto da meia noite, com o toque seco da matraca ouvido a longa distância, chamando os participantes. Após o encontro das “rezadeiras” e dos “penitentes” num local próximo ao cemitério, destacava-se um veterano “penitente”, portando uma grande cruz de madeira em cujos braços estava pendurada uma toalha branca formando a letra “M” e, a partir daí, iniciava uma caminhada em direção ao cemitério, seguido pelos membros da “lamentação” ao som da matraca e em fila indiana, como em procissão cantando benditos de misericórdia, portando velas acesas e se encaminhando para o início das “sete estações”. A partir desse momento a população da cidade, curiosa, começa a chegar para assistir o ritual. Face ao rito esotérico que induz um certo temor, o público se mantinha à pequena distância da procissão, receosa de se aproximar dos “penitentes” que acompanham a “lamentação” esgueirando-se por dento da caatinga próxima para não serem identificados pela platéia e não permitindo que pessoas estranhas deles se aproximassem, com exceção apenas de ex-penitentes e outra pessoas de confiança com sacolas contendo roupas que usarão após o suplício e vasilhames com água de beber.
Chegando na “primeira estação” o portador da cruz ali estacionava e era esse o momento em que os “penitentes”, já vestidos a caráter, com o saiotes brancos, cabeça coberta e torso desnudo, saiam do mato, fazendo um certo barulho e causando espanto aos curiosos, e aproximavam-se para beijar a cruz. Nesse momento as pessoas que assistiam as “lamentações” afastavam-se ou mantinham-se de cabeças abaixadas enquanto os “penitentes”, ajoelhados ante a cruz faziam as suas rápidas orações particulares e, da mesma forma como chegaram afastavam-se para o interior da caatinga ali ficando no aguardo da autorização para se auto-flagelarem.
Logo depois da retirada dos “penitentes” e rezado o primeiro Pai Nosso o líder com a cruz, chefe da procissão, se distancia do grupo, indo até a beira do mato e, discretamente, emite um baixo assobio que é o sinal para os “penitentes” darem início à auto-flagelação. Imediatamente de dentro do mato surge um barulho conhecido e ritmado produzido pelo impacto das afiadas lâminas com a carne dos “penitentes”. Junto, também se ouve alguns uivos de dor discretamente emitidos pelos novatos que estão pela primeira vez sendo submetidos ao sacrifício. Diz a tradição que quem decide participar da seita dos “penitentes” é obrigado a se cortar durante 7 anos e, caso não tenha coragem de ele próprio fazer a penitência, no dia da “lamentação”, será obrigado a isso pelos companheiros. Com menos de meia hora de flagelação pode-se sentir no ar o cheiro de sangue fresco que corre nas várias costas dilaceradas e encharcam o branco lençol colocado em volta da cintura. Também é grande a movimentação das “rezadeiras” que junto aos “penitentes” fornecem água em abundância para evitar uma desidratação e ficam de sobre-aviso para o caso de algum novato não suportar a perda de sangue e precisar de algum socorro médico.
Iniciada a auto-flagelação, a procissão, tendo na frente o velho “penitente” levando a cruz e seguido pelas rezadeiras e o público curioso, inicia a sua caminhada para percorrer as “sete estações” sendo acompanhada de longe e dentro do mato pelos “penitentes” que, mesmo em movimento, não interrompem o sacrifício. Concluído o percurso das “sete estações” a cruz é novamente beijada pelas “rezadeiras” e “Penitentes” e após essa cerimônia do “beijamento” encerra-se, naquela noite, a "alimentação das santas almas benditas".
Com a dispersão os “penitentes” se dirigiam à beira do Rio São Francisco para se banharem e dar um trato inicial aos cortes colocando água de sal e outros remédios caseiros para evitar maiores problemas.
As “lamentações” e principalmente os rituais dos “penitentes” nunca foram pacificamente aceitas pelas autoridades xiquexiquenses. Era comum, durante a quaresma, a perseguição dos adeptos por parte da polícia que os escorraçava para bem longe do perímetro da cidade e houve épocas em que os “penitentes” tiveram que se “cortar” no interior da caatinga a alguns quilômetros da sede do Município, para não perderem a continuidade da promessa dos 7 anos. A Igreja católica, a depender do Pároco, adotava atitudes diversas, ora radicalmente contra ora fazendo vistas grossa. Assim, em Xiquexique, houve momentos em que era permitida a permanência dos penitentes na porta da Matriz do Senhor do Bonfim e outros em que nem na frente do templo poderiam passar. O Padre José de Oliveira Bastos (Padre Bastos), foi um dos mais liberais chegando, inclusive a permitir a visita dos penitentes durante a vigília do Senhor Morto.


OBS. A fotografia que ilustra esta matéria é dos "penitentes" de Xiquexique durante um exercício de auto-flagelação.

5 comentários:

  1. A revista " O Cruzeiro" de circulação nacional fez uma reportagem com duas páginas sobre os penitentes de xiquexique.
    Eu era moleque de uns 9-10 anos e entrei no meio dos penitentes para observar o que eles faziam. Eles tomavam muita água, talvez pela perda do sangue e fumavam muito. Um deles olhou pra mim e foi falar com os outros: "aqui tem gente que não é dos nossos!" Eu desconfiei e saí correndo e entrei no meio das rezadeiras e do povo e eles correndo atrás de mim. Foi uma experiência para não se esquecer.
    Meu amigo Mário Velho se engraçou com uma filha de uma rezadeira e entrou para a turma dos penitentes, mas não tinha coragem de se cortar. Os outros penitentes foi quem fizeram o serviço nele e até hoje é o que me lembro.



    Vilmar.

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  2. Ouvi hoje à noite uma matéria sobre os Penitentes de Juazeiro-Ba na Radio Educadora. O ritual é semelhante ao da nossa cidade, só que alguns carregam um pesado madeiro e outros se autoflagelam. A propósito, ainda há penitentes em Xique-Xique?

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  3. Ouvi hoje, no Jornal da Educadora, uma matéria sobre os penitentes de Juazeiro-Ba. É semelhante ao nosso ritual, só que alguns penitentes carregam um pesado madeiro e outros se autoflagelam como forma de penitência.
    A propósito, ainda há penitentes em Xique-Xique?

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  4. Oi Lady,Vilmar,Juarez,conterrâneos Xique-Xiquenses !! Ainda existe o ritual Penitente,acontece todos os anos atrás do Cemitério do Bairro das Pedrinhas . Muita gente inclusive de outras cidades assistem não muito próximos deles é claro o ritual . As matracas ecoando o som e o autoflagelo. Terminado o ritual os Penitentes se deslocam para a Ipueira para se lavarem e até curarem da ressaca,pois durante o os cortes pelo corpo eles bebem e fumam muito .
    Abraço,Adriano Brito/BLOG XIQUESAMPA (www.xiquesampa.blogspot.com) .

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  5. Em muitas ocasiões acompanhei,como devoto espectador durante a Semana Santa, os penitentes nas suas "lamentações ou " alimentação" das almas do purgatório nos arredores do bairro das Pedrinhas. Evidencio que as flagelações, descritas por Juarez, não se constituem privilégio tão somente de Xique-Xique. Em diferentes partes do Vale do São Francisco e em alguns lugares do Nordeste, subsistem essas auto-flagelações durante a Semana Santa. Os Penitentes, cujos membros pertencem, rotineiramente, à classe desprovida de recursos econômicos, buscam o auxíio sobrenatural por parte das "santas almas benditas" para minorar às doenças e dificuldades materiais, enfrentando, no dia-a-dia o meio hostil, onde as sêcas e os bolsões de miséria ainda insistem em perdurar. É natural que procurem a proteção sobrenatural, quando lhes faltam a segurança econômica e social.

    nilsonazevedo@globo.com

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