domingo, 9 de maio de 2010

Crônica: O Caixão da Misericórdia


O CAIXÃO DA MISERICÓRDIA

Tenho dúvidas se os xiquexiquenses mais velhos ainda se lembram do famigerado “Caixão da Misericórdia”. Mas, tenho certeza absoluta que a geração mais nova com menos de 40 anos, desconhecem ou nunca ouviram falar do referido “caixão”. Pois bem, para os mais novos, vou adiantar que se tratava de um caixão comunitário que servia para levar ao cemitério o corpo das pessoas mais pobre, dos indigentes, daqueles desfavorecidos da sorte cujas famílias não podiam adquirir um caixão para enterrá-lo, mesmo dos mais baratos.
Nos primeiros anos do século XX, Xiquexique (BA), não dispunha de funerária e sempre que ocorria um óbito imediatamente era chamado um carpinteiro para se encarregar do fabrico do caixão, sob medida. Por isso, apenas as famílias mais abastadas podiam, decentemente, enterrar seus mortos envoltos em caixões de madeira.
O pobre, como nas demais cidades do interior deste grande Brasil, sofria até após a morte, pois a obrigação dos parentes de enterrá-lo causava muitos transtornos pela falta das mínimas condições financeiras para pagar um caixão de madeira, feito às pressas e sob encomenda. Por isso, geralmente, os pobres transportavam o seu defunto até o cemitério, enrolado numa rede presa a um caibro de madeira apoiado sobre os ombros de parentes e amigos. Fazia a sua última viagem parecendo um porco sendo carregado para a feira.
Segundo as pesquisas realizadas pelo cronista xiquexiquense Carlos Santos o fabricante do “caixão da misericórdia” foi o carpinteiro Possidônio que no ano de 1934, fora convidado pelo Prefeito Cel. Francisco Xavier Guimarães para construir um “caixão”, em boa madeira de lei, com um tamanho padrão que coubesse qualquer defunto pobre, que precisasse ser transportado para o cemitério. Era um ato de caridade e solidariedade do chefe do executivo municipal às famílias daqueles que miseravelmente eram levados para a sua última morada enrolados numa rede.
Contam os mais velhos que o carpinteiro Possidônio iniciou com afinco o fabrico do artefato encomendado pelo Prefeito, tendo, pessoalmente, escolhido as melhores tábuas de madeira que após serradas dentro das medidas por ele determinadas, foram afixadas com pregos especiais, a prova de ferrugem e, para maior resistência utilizou folhas de flandres como forro interno. Como deveria ser usado em vários enterros, para não aparentar a sujeira que surgiria com o constante uso, utilizou como cor externa um verniz escuro.
Mas, ao concluir a obra acabada, contam os contemporâneos, o mestre Possidônio não ficou satisfeito com o trabalho por entender que o “caixão” ficara excessivamente pesado pelas grossas tábuas utilizadas, além de apresentar um aspecto lúgubre e mesmo pavoroso. Expôs suas decepções ao Prefeito, que, não levando em conta as preocupações do marceneiro com o “caixão” e como tinha pressa em utilizá-lo, deu o caso por encerrado, batizou-o como “CAIXÃO DA MISERICÓRDIA” e mandou colocá-lo numa pequena capela do cemitério novo para que ficasse a disposição de todos os pobres do município que necessitassem enterrar seus mortos.
Possídônio que já deveria ter propensão para a doença ante a reação do Prefeito entrou em grande depressão e daí para a loucura foi um pulo. De tanto sofrer física e psicologicamente, Possidônio faleceu no interior de um terreno murado vizinho ao clube dos operários, na Praça 6 de julho e somente passado alguns dias foi localizado por populares em face do mau cheiro que exalava do seu corpo já em adiantado estado de putrefação. Por ironia do destino ou pela falta de caridade do povo, Possidônio foi levado para o cemitério dentro do Caixão da Misericórdia por ele construído e contra o qual sempre nutrira uma aversão pavorosa. Felizmente o seu corpo não ficou eternamente dentro daquele caixão, vez que fora lançado à cova.
Eu, ainda, cheguei a conhecer o Caixão da Misericórdia e o seu construtor mestre Possidônio. Este, já o conheci sofrendo das faculdades mentais, perambulando pelas ruas de Xiquexique. Era um louco pacato que não fazia mal a ninguém e sempre fora respeitado até mesmo pelos meninos que tinham como uma das diversões perturbar os doentes mentais.
Quanto ao Caixão da Misericórdia, lembro-me bem dele, lá pelos idos de 1954, como uma coisa pavorosa e que já deveria estar desativado. Se já era feio e até repugnante aos olhos de Possidônio o seu construtor, nos idos de 1934, quando novo, imagine passados 20 anos, tendo transportado dezenas ou centenas de defuntos pobres e sem sofrer nenhuma manutenção. Era um artefato que vivia na escuridão da pequenina capela do cemitério novo e que a gente podia vislumbrar olhando pelas grades da porta, como uma coisa horripilante e de fazer medo a qualquer criatura. Devia já estar mal cheiroso entranhado com a inhaca de tantos defuntos carregados, com o forro de flandres totalmente enferrujado e resistente apenas nas partes de madeiras representadas por grossas tábuas pintadas de preto.
O “Caixão da Misericórdia” desapareceu em 1964, após 30 anos de “bons” serviços prestados. Contam que naquele ano, com a morte de um velho e pobre pescador os seus amigos decidiram homenageá-lo com um enterro digno para compensar a pobreza e o sofrimento que tivera quando em vida. O velho pescador não tinha família e os amigos tão pobres quanto ele fizeram uma coleta que deu apenas para comprar a mortalha, mas insuficiente para comprar um caixão digno e por isso a solução foi usar o velho Caixão da Misericórdia. Chegando ao cemitério decidiram os amigos do velho pescador não atirar o corpo diretamente na cova, mas, como sinal de afeição e carinho enterrá-lo juntamente com o Caixão da Misericórdia.
O velho pescador foi a última pessoa de Xiquexique a ser transportado dentro do miserável Caixão da Misericórdia, sendo, no entanto, condenado a ter as suas cinzas presas naquele tenebroso invólucro que ainda deve estar intacto, em algum lugar do cemitério, pois, pela espessura e peso das suas tábuas de madeira, o chão levará talvez séculos para consumi-lo.

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