quinta-feira, 5 de abril de 2012

Crônica Xiquexiqueana: A SEMANA SANTA E OS PENITENTES

OS PENITENTES DE XIQUE-XIQUE (BA).


Juarez Morais Chaves
Os “penitentes”, homens que se auto-flagelam durante a Quaresma, existem desde muito tempo nas comunidades ribeirinhas do Rio São Francisco, mas parece que Xique-Xique (BA) foi uma das cidades onde mais floresceu essa prática.
Provavelmente desde o final do sec. XIX, durante a Quaresma e principalmente no decorrer da Semana Santa, acontecia na cidade um evento que, apesar de se repetir todos os anos, deixava a comunidade local com grande expectativa e curiosidade. Eram as “lamentações”, ritual característico da idade média, realizadas perto da meia-noite, que tinham como principais protagonistas os “penitentes”, representados por pessoas do povo, pescadores e agricultores que, durante a Quaresma e, com mais intensidade, durante a Semana da Paixão submetiam-se a uma auto-flagelação como sacrifício pela remissão dos pecados e a certeza do ganho da felicidade no céu.
A auto-flagelação a que se submetiam os "penitentes" era precedida pelas "lamentações", formadas principalmente por mulheres que à noite e em grupos, dirigiam-se para o cemitério e lá chegando iniciavam um rito que tinha como objetivo salvar as almas do purgatório.
Entoavam lúgubres cantos sacros que ecoavam pela silenciosa noite xiquexiquense e eram ouvidos em quase toda a pequena cidade. Entre essas cantigas, tinha uma, de domínio público, que sempre estava presente em todas as "lamentações" e assim dizia: "Senhor meu Deus, tenha piedade de mim"; "Senhor meu Deus, pequei Senhor, tenha piedade de mim"; "Senhor meu Deus, pequei Senhor mas pelo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo tenha piedade de mim".
O ritual do auto-suplício consistia em retalhar as costas com pequenas e afiadas navalhas amarradas a uma tira de couro que eram jogadas de lado e por sobre os ombros, num movimento característico que consistia em oscilar o tronco para frente e para baixo permitindo, assim, que o gume da navalha atingisse por inteiro as costas. Para facilitar e tornar eficaz a tarefa de se cortar, os “penitentes” cobriam o corpo da cintura para baixo, com brancos lençóis e enrolavam a cabeça com panos da mesma cor, deixando o torso a descoberto.
Antes de iniciarem a auto-flagelação açoitavam as costas com galhos de faveleira, uma planta abundante e nativa no Município que tem nos espinhos das folhas um substância tóxica que ao atingir a pele e causar intensa dor, a torna relativamente insensível e anestesiada. Durante a flagelação, entoam cânticos religiosos e rezam pelos mortos, principalmente as almas do purgatório, por assim entenderem que as faltas graves, suas e dos que já morreram, serão perdoadas após o sacrifício.
O grupo dos “penitentes” não pertencia a uma organização formal e os procedimentos que iriam adotar durante a auto-flagelação na Quaresma eram ditados pelo costume e pela tradição. Tinham apenas o cuidado de não serem identificados, pelo povo que assistia, quando praticavam o suplício. De qualquer forma a imensa maioria do povo não tinha idéia de quem estava no meio do mato, à meia noite, se cortando.
A “lamentação” propriamente dita era formada de dois contingentes: o grupo das “alimentadeiras” ou rezadeiras, composta de homens e mulheres, que se encarregavam de fazer as orações pelos que já morreram e durante a procissão chacoalhavam um instrumento de madeira e ferro chamado de "matraca" e o grupo dos “disciplinadores” ou “penitentes”, exclusivo de homens, que durante a Quaresma se martirizam com chicotes de couro tendo na ponta afiadas lâminas de ferro, usadas para retalhar as costas.
As “lamentações”, começavam na quarta feira de cinzas, início da Quaresma, quando todos os “penitentes”, veteranos e noviços, se apresentavam para o sacrifício da auto-flagelação e semanalmente, continuavam com o rito, até a Sexta-feira da Paixão, data em que, novamente, todos os auto- flageladores estavam presentes. Durante a Quaresma havia um revezamento dos “penitentes” para que os cortes cicatrizassem e pudessem sofrer nova flagelação. Era um período de descanso quando esses "penitentes" apenas acompanhavam a “lamentação” no grupo das rezadeiras.
O ritual das “lamentações” iniciava-se, já perto da meia noite, com o toque seco da "matraca" ouvido a longa distância, chamando os participantes. Após o encontro das “rezadeiras” e dos “penitentes” num local próximo ao cemitério, destacava-se um veterano “penitente”, portando uma grande cruz de madeira em cujos braços estava pendurada uma toalha branca formando a letra “M” e, a partir daí, iniciava uma caminhada em direção ao cemitério, seguido pelos membros da “lamentação” ao som da "matraca" e em fila indiana, como em procissão, cantando benditos de misericórdia, portando velas acesas e se encaminhando para o início das “sete estações”.
A partir desse momento a população da cidade, curiosa, começava a chegar para assistir o ritual. Face ao rito esotérico que induz um certo temor, o público se mantinha à pequena distância da procissão, receosa de se aproximar dos “penitentes” que acompanham a “lamentação” esgueirando-se por dento da caatinga próxima para não serem identificados pela platéia e não permitindo que pessoas estranhas deles se aproximassem, com exceção apenas de ex-penitentes e outra pessoas de confiança com sacolas contendo roupas que usarão após o suplício e vasilhames com água de beber.
Chegando na “primeira estação” o portador da cruz ali estacionava e era esse o momento em que os “penitentes”, já vestidos a caráter, envoltos em lençóis brancos, cabeça coberta e torso desnudo, saiam do mato, fazendo um certo barulho e aproximavam-se para beijar a cruz. Nesse momento as pessoas que assistiam as “lamentações” afastavam-se ou mantinham-se de cabeças abaixadas enquanto os “penitentes”, ajoelhados ante a cruz faziam as suas rápidas orações particulares e logo afastavam-se para o interior da caatinga ali ficando no aguardo da autorização para se auto-flagelarem. Logo depois da retirada dos “penitentes” e rezado o primeiro Pai Nosso o líder com a cruz, chefe da procissão, se distancia do grupo, indo até a beira do mato e, discretamente, emite um baixo assobio que é o sinal para os “penitentes” darem início à auto-flagelação.
Imediatamente de dentro do mato surge um barulho conhecido e ritmado produzido pelo impacto das afiadas lâminas com a carne dos “penitentes”. Junto, também se ouve alguns uivos de dor discretamente emitidos pelos novatos que estão pela primeira vez sendo submetidos ao sacrifício. Diz a tradição que quem decide participar da seita dos “penitentes” é obrigado a se cortar durante 7 anos e, caso não tenha coragem de ele próprio fazer a penitência, no dia da “lamentação”, será obrigado a isso pelos companheiros.
Com menos de meia hora de flagelação pode-se sentir no ar o cheiro de sangue fresco que corre nas várias costas dilaceradas e encharcam o branco lençol colocado em volta da cintura. Também é grande a movimentação das “rezadeiras” que, junto aos “penitentes”, fornecem água em abundância para evitar uma desidratação e ficam de sobre-aviso para o caso de algum novato não suportar a perda de sangue e precisar de algum socorro médico.

Iniciada a auto-flagelação, a procissão, tendo na frente o veterano “penitente” levando a cruz e seguido pelas rezadeiras e o público curioso, inicia a sua caminhada para percorrer as “sete estações” sendo acompanhada de longe e de dentro do mato pelos “penitentes” que, mesmo em movimento, não interrompem o sacrifício. Concluído o percurso das “sete estações” a cruz é novamente beijada pelas “rezadeiras” e “Penitentes” e após essa cerimônia do “beijamento” encerra-se, naquela noite, a "alimentação das santas almas benditas".
Com a dispersão os “penitentes” se dirigiam à beira do Rio São Francisco para se banharem e dar um trato inicial aos cortes colocando água de sal e outros remédios caseiros para evitar maiores problemas.
As “lamentações” e principalmente os rituais dos “penitentes” nunca foram pacificamente aceitas pelas autoridades xiquexiquenses. Era comum, durante a Quaresma, a perseguição dos adeptos por parte da polícia que os escorraçavam para bem longe do perímetro da cidade e houve épocas em que os “penitentes” tiveram que se “cortar” no interior da caatinga a alguns quilômetros da sede do Município, para não perderem a continuidade da promessa dos 7 anos.
A Igreja católica, a depender do Pároco, adotava atitudes diversas, ora radicalmente contra ora fazendo vistas grossa. Assim, em Xique-Xique, houve momentos em que era permitida a permanência dos penitentes na porta da Matriz do Senhor do Bonfim e outros em que nem na frente do templo poderiam passar.

O Padre José de Oliveira Bastos (Padre Bastos), foi um dos mais liberais chegando, inclusive a permitir a visitação dos penitentes durante a vigília do Senhor Morto.

OBS. A fotografia que ilustra esta matéria é dos "penitentes" de Xique-Xique durante um exercício de auto-flagelação

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