O carnaval em Xique-Xique, pequena comunidade do interior baiano, nas décadas
de 1950 e 1960, era a festa mais esperada pela população, principalmente os
jovens estudantes da cidade.
A ansiedade pela chegada do carnaval era
contrabalançada pela expectativa do fim das férias letivas, pois geralmente era o
último evento que antecedia o retorno para os colégios, naquela época, situados
em outras cidades.
Os foliões, devido à pobreza da comunidade, usavam, nos
bailes realizados no Clube Recreativo Sete de Setembro e no Clube Beneficente
dos Operários, modestas fantasias produzidas em casa e com materiais adquiridos
no comércio local.
Na parte da manhã a movimentação do carnaval era feita
exclusivamente pelos rapazes e moças da cidade. Por conta própria montavam
pequenos blocos de 10 a
20 pessoas que utilizando diversos tipos de disfarces, tais como máscaras e
vestuários do sexo oposto, saiam às ruas ao som de tamborins, tambores e às
vezes cuícas, instrumentos rudimentares e feitos com matéria prima local,
apenas para terem algo parecido com uma batucada. Essa brincadeira geralmente ia
até o meio dia e se limitava a entrar nas casas dos parentes e amigos para
saborear um licor ou outra bebida que fosse servida pelo dono.
Lembro-me de uma batucada que organizamos cujos tamborins foram
feitos de pele de cobra estirada sobre uma armação quadrada de madeira. Cada um
dos foliões fabricava o seu próprio tamborim, tambor ou outro qualquer
instrumento de percussão que pudesse fazer barulho nos dias do carnaval e lá se
ia, de instrumento em punho, para os ensaios da "bateria" que geralmente
aconteciam no jardim da Praça D. Máximo, nos dias em que antecediam o carnaval.
À tardinha, lá pelas 17 horas, quando o sol esfriava, surgia o
indefectível “bloco das putas”, formado pelas prostitutas da cidade que moravam
na Rua do Perau (Rua Benjamim Constant), tendo a frente um conhecido
homossexual que dançando e requebrando ao compasso da música levava o
estandarte. O interessante era que esse bloco, composto
exclusivamente de prostitutas e que percorria as principais ruas da cidade, não
escandalizava a sociedade da época, mas, pelo contrário sempre era esperado e
as pessoas se divertiam bastante com os trejeitos e requebros das carnavalescas
e principalmente do porta-estandarte.
Encerrado o desfile do bloco das "meninas do perau" a
gente ia jantar e se preparar para o tradicional baile que sempre acontecia nos
Clubes da cidade a partir das 21 horas. Era o apogeu do carnaval de
Xique-Xique. Nesses dias de festa, excepcionalmente, a luz elétrica que apagava
às 22:00 horas, permanecia acesa até as 3 da madrugada permitindo assim, que
todos os foliões pudessem brincar e voltar, comodamente, para suas residências.
Nesses bailes aconteciam as coisas mais engraçadas provocadas,
principalmente, pela cheirada ao lança-perfume, hoje proibido, mas que, naquele
tempo, era legal e permitido, em todos os carnavais. Idosos e adolescentes
ficavam eufóricos e, sob o efeito do lança, começavam a cantar e a dançar, numa
animação nunca vista. Senhoras e mocinhas que não ousavam cheirar o gostoso
perfume em público iam para o sanitário feminino e a animação era tanta que se
ouviam as boas gargalhadas e gritarias dadas pela foliãs.
Quero deixar uma pequena informação sobre o famoso LANÇA-PERFUME,
tão consumido no meu tempo de folião e hoje totalmente desconhecido pela geração
pós 1961 ano em que foi proibida a fabricação. O lança-perfume era um acessório
indispensável ao folião que quisesse brincar o carnaval na década de 1950.
Basicamente era um líquido perfumado, muito volátil, fabricado por uma
indústria multinacional e acondicionado, sob pressão, em tubos de metal
cilíndrico, em volumes de 100 e 200 gramas , lacrados de modo especial para
evitar o vazamento do éter perfumado.
Lançar o perfume sobre uma moça era um ato de galanteio e que
poderia ser retribuído do mesmo modo caso a jovem possuísse, também, um
lança-perfume e estivesse interessada no folião. Era o começo de um namoro que
as vezes se estendia até depois do carnaval e muitas vezes dava em casamento.
Todavia, se a moça escolhida não estivesse interessa no folião virava-lhe as
costas e continuava a sua dança.
O jato lançado, em contato com a pele, provocava uma sensação de
frescor e de perfume, muito agradável para quem recebia o que provocava entre
os casais de namorados uma constante troca de jatos. No final da festa, as
fantasias usadas pelos brincantes estavam totalmente impregnadas de perfume.
No entanto, o que era pura forma de galanteio e uma diversão
inocente transformou-se numa atitude perigosa e prejudicial à saúde, quando
alguém descobriu que aspirando o perfume pelo nariz ou boca, ficava embriagado
e sob os efeitos de uma droga alucinógena, e, se a quantidade absorvida fosse
grande, poderia provocar, inclusive, a morte do inalador.
Com o passar dos anos o lança-perfume nos carnavais veio a ser
utilizado exclusivamente para consumo próprio, com a utilização de lenços e
pequenas toalhas envoltas no pescoço do folião que eram embebidas com o líquido
perfumado e levadas ao nariz para serem cheiradas, não havendo mais o interesse
do folião em lançar os jatos gelados no corpo e na fantasia da mulher amada.
Por causa dessa distorção no seu uso e pela constatação de que na
realidade se tratava de um tóxico impróprio para a saúde, a sua produção foi
proibida em 1961, quando Jânio Quadros assumiu a Presidência da República.
O baile de carnaval, propriamente dito, naquele tempo era pura inocência e ingenuidade. A movimentação dos foliões no
salão, se dava em círculos e num só sentido para evitar choques entre as
pessoas. O namorado dançava com os braços em volta do pescoço ou da cintura da
namorada e essa era a maior intimidade permitida pelos pais que sempre estavam
presentes e com fiscalização ostensiva. Um beijinho, sequer, quando se
conseguia dar, era uma coisa muito arriscada e que poderia provocar a ida da
menina de volta para casa.
O mais interessante dos carnavais de Xique-Xique eram os ensaios
realizados semanas antes da festa para que os foliões aprendessem as musicas
carnavalescas. Como os meios de comunicações eram deficientes e até o próprio
radio era privilégio de poucos, os diretores dos clubes compravam em Salvador as
partituras e letras musicais das marchas e sambas que estavam sendo tocadas,
principalmente para o carnaval no Rio de Janeiro. De posse dessas partituras e
com a ajuda do músico saxofonista Mário Torres Rapadura, de saudosa memória,
ensaiavam-se todas as noites até que a gente estivesse dominando as melodias e
as letras das marchinhas e sambas carnavalescos.
E assim, naquele tempo, a gente ia brincando o carnaval em Xique-Xique.
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