CÂNTICOS, BENDITOS e TRADIÇÕES
In Nilson
A matraca soava demoradamente e a lamentação seguia pelas Estações,
assemelhadas à Via Sacra, a entoar os “padre-nosso” e benditos, todos os
cânticos em louvor a Deus, a Virgem Maria ou a um Santo qualquer. Os penitentes
flagelavam-se com a “disciplina” materializada em lâminas afiadas, num suplício
impressionante á guisa de arrependimento dos seus próprios pecados e,
porventura, dos alheios.
Acreditava-se e acredito eu que as “almas santas
benditas” estariam a levitar, temporariamente, no limbo ou no purgatório, a
acompanhar os fiéis penitentes durante a lamentação, a esperar suas orações
contundentes em forma de benditos, na primordial esperança de diminuir ou
purgar os seus sofrimentos por constante crença, numa espécie de progressão da
pena sem a juridicidade, no particular.
Os devotos, por sua vez, estariam amparados e
recompensados por essas futuras e abençoadas “almas santas benditas” à busca de
uma hipotética salvação eterna , mesmo inflacionados com as teorias sobre o
desrespeito a envolver as crenças populares e das minorias, tão divulgadas nas
sofisticadas máquinas dos Ipad II, da segunda remessa deste início do século
XXI, sem resultados visíveis.
Os rituais de lamentação ainda praticados pelos
penitentes de Xiquexique, embora propensos à extinção, jamais deveriam ser por
eles abandonados em face dos fatídicos e prosaicos sete anos, que vem a ser o
intervalo de suas medievais existências teleológicas e teológicas, posto que as
almas dos que habitaram as Prefeituras, as Câmaras de Vereadores, com
ressonância nas almas penadas, nos fantasmas oficiais dos Deputados e Senadores
do Congresso Nacional e nas almas dos que também habitaram a Presidência da
República, tanto no Palácio do Catete quanto no Palácio da Alvorada e do
Planalto, visto que estamos a lamentar que foram eles os que prometeram favores
e vida eterna aos nossos penitentes e a nós xiquexiquenses comuns, nos
discursos de palanques. Contudo, outras almas não menos comuns pairam no nosso
céu cor de anil.
Essas almas de uma minoria de eleitores
xiquexiquenses, almas verdadeiramente benditas, pedirão orações aos nossos
penitentes, com mais intensidade e fervor, em que pese a salvação já
consolidada. Se um penitente daqui de Xiquexique abandonar ou esquecer-se da
autoflagelação durante os setes anos da obrigação, contaram-me os antigos que
essas mesmas “almas santas benditas” se incumbirão de aplicar nas costas, na
região lombar do infiel, a lâmina da “disciplina”, já que o nosso herói estará,
de antemão, ensanguentado pelos espinhosos ramos dos faveleiros. Um deles, do
bairro das Pedrinhas, confessou-me, a propósito, que o pé de favela é uma
árvore daqui do sertão do São Francisco, da família das Euforbiáceas.
Adiantando-me, na bucha ou de inopino, se desejarem, que, na sua condição de
autêntico penitente, usará a “disciplina” laminada, no estrito cumprimento do
seu voto implacável, a partir da quarta-feira até a sexta-feira da Quaresma.
Residi nas imediações da Capela de São Pedro, no
bairro dos Paramelos. Localizava-se ali uma Estação, Via Crucis de peregrinação
dos penitentes. Na ocasião, aprendi esse bendito:
“Na quinta-feira Jesus com
seus discípulos
De
oliveira foi pra Jerusalém
Na
paz de Cristo, meu Jesus com seus discípulos
Ele
padeceu a favor de nós também.
Na
hora da ceia, meu Jesus com seus discípulos
Banhando
os pés, com grande contentamento
Com
grande gosto no Santíssimo Sacramento
Depois
de cear, meu Jesus saiu pra o horto
Foi
fazer três horas de oração
Os
judeus iam à frente com a tropa
Fazendo
dele um herói, um capitão.
Beijando
o Cristo no seu lado direito
Felicidade,
ai meu senhor, divino mestre Jesus te disse:
Eu
conheço tua falsidade
Por
este beijo que agora tu me destes
Meu
Jesus foi surrado realmente
Com
tanto sangue derramado pelo chão
Foram
tantos danos que sofria meu Jesus
Com
sua santa Mãe no seu doce coração
Pegaram
meu Jesus e amarraram seus braços
Saiu
com ele na rua, ainda Pilatos disse
Tu
não és o filho da Virgem?
Porque
deixou os Judeus te açoitar?
Depois
que judiaram de meu Jesus
Pegaram
ele e botaram num troninho
A
coroa que botaram na cabeça
Era
toda com setenta e dois espinhos
Os
espinhos da coroa de Jesus
Seu
coração todo cheio de energia
Arrebentou
setenta veias de sangue
Que
penetravam pelos olhos e ouvidos
Jesus
chamou São Simão, São Cirineu
Me
ajude a levar esta cruz
Que
o peso do madeiro era tanto
Que
seus olhos ficaram mortos, sem luz
E
São Simão levou a cruz
Um
passo, um passo, ai meu Senhor não posso mais
Só
quem pode conduzir este madeiro é meu Bom Jesus
Que
é um poderoso pai
Eu
ofereço, eu ofereço este bendito ao Senhor
Ao
Senhor que está na cruz
Por
intenção, intenção das almas santas
Que
para sempre, para sempre, amém Jesus!”
Após a última estrofe, mais uma vez, a matraca estala ao som de um dos
“padre-nosso” entoado pelo responsável pela via crucis do sacrifício penitente,
cuja ladainha foi repetida e glosada pelo devotos e acompanhantes:
“Mais outro Padre-Nosso com
a sua Ave-Maria.
Mais
outro Padre Nosso, com sua Ave-Maria
Para
todos aqueles que morreram afogados
Para
que Deus Nosso Senhor Jesus Cristo
Dê
o Reino da Glória, por esmola”.
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