domingo, 22 de janeiro de 2012

Crônica de Guarabira: VAMOS CHAMAR O VENTO

O CANTOR E COMPOSITOR GUARABYRA


Pouca gente sabe, mas o famoso compositor/cantor Guarabyra, viveu grande parte da sua infância na cidade de Xique Xique (BA). O seu pai, Pastor Gutemberg Nery Guarabira, Missionário da Junta de Missões Nacionais da Convenção Batista, fundou em Xique Xique, no dia 05.06.1949, patrocinada pela Igreja Batista da Barra, a Congregação Batista de Xique Xique.

Veja o que o grande compositor Guarabyra diz sobre a nossa querida cidade:

"É impressionante ter saído de Xique-Xique (BA) tão pequeno e mesmo depois de morar em tantas cidades diferentes, ter feito tantos amigos outros, passar por tantas aventuras diversas, continuar acordando na velha praça do Pirulito.
Se penso em escrever um livro, Xique-Xique é o primeiro cenário. Se penso em rabiscar uma crônica, lá vem Xique-Xique de novo.
O cais, a igreja, a prefeitura, o Gringo, Cazuzão, o cancelão do campo. Tudo presente na memória como se houvesse saído de lá anteontem."
Como se não bastasse tão importante depoimento, Guarabyra ainda nos honra com a bela crônica, enviada para ser publicada no Blog Juarez Morais Chaves, sobre uma brincadeira muito conhecida dos meninos xiquexiquenses, pelos menos dos que foram crianças na década de 1950.

"VAMOS CHAMAR O VENTO

GUT GUARABIRA
Vamos chamar o vento..." Braços estendidos, corpos bem esticados, em pé e de frente para o fim escuro da avenida silenciosa e deserta, esperávamos o vento de olhos fechados, concentrados. Minha mãe, da porta de casa, cantava o verso e comandava a última brincadeira da noite. Eu e meus amigos aguardávamos a brisa. Às vezes, ela vinha. Quando não chegava, minha mãe mudava a letra da canção de Caymmi para "Vamos escovar os dentes..."
Era o sinal de boa-noite. Eu e a garotada reclamávamos. Alguém ainda achava que havia escutado um rumor de vento. Esperávamos e nada. Sem mais desculpas, nos despedíamos. Já dentro de casa, a pergunta era sempre a mesma: "Por que não podia dormir mais tarde?". A resposta também era a mesma de sempre: "Porque a luz acaba às dez e meia". E daí? — eu pensava. Vai ver que, no escuro, o vento até apareceria logo.
O vento, nas vezes em que vinha, era uma festa. Surgia do nada. A característica dali na época da seca era, ou ausência total de ventos, ou brisa forte. Não tinha meio-termo. Certas vezes, soprava tão bravo que virava rodamoinho. Movimentado-se em círculos, erguia um cone de areia que cobria a luz amarelada dos raros postes, alvoroçava nossas vidas e, depois, ia arrefecendo até nos abandonar por completo. O vento da noite, não sei porquê, quase sempre começava tarde. Um mistério insolúvel e detestável, visto que, se nos fizesse companhia mais cedo, jamais iríamos dormir sem antes ter sentido a sensação de vôo, que nos causava ao nos atingir de braços abertos, de frente para o escuro do fim da avenida.
Isso era em Xique-Xique (BA). Porém, descendo no mapa e subindo no rio — o São Francisco desce para cima do mapa —, na região das cidades de Piranhas, Pão de Açúcar e Penedo, depois do cânion de Paulo Afonso, era diferente. Ali, jamais falta vento. Os barcos, de velas sempre enfunadas, singram com velocidade, batendo forte nas ondas formadas pelos pés-de-vento. Exigem perícia e arrojo dos velejadores. Dizem que aquela arte de navegação é herança dos holandeses da invasão. Essas embarcações, quando vistas de frente, com as duas velas — uma à proa, outra à popa — estendidas para lados opostos, parecem mãos imitando asas de pássaros.
Outro dia, ouvi o navegador Amyr Klink dizendo que a história da navegação, no Brasil, não é considerada cultura digna de nota. E que, quando se procura patrocínio para eventos de pintura, música, restaurações de obras arquitetônicas antigas, e outras iniciativas reconhecidas como culturais, ele é possível. Para se reconstituir a história da navegação brasileira, da construção naval, porém, não se consegue verba alguma. Nem ouvem. Ora, até por ser um dos maiores navegadores do mundo, deveriam ao menos escutá-lo. Ao fim do depoimento, afirmou que está acostumado a essas dificuldades. Todavia, todas as vezes em que parte, ao menos deve saber que nós, brasileiros, torcemos com fervor para que bons ventos o acompanhem.
No Sul, estão ocorrendo rajadas poderosas. Não sei se sempre existiram, ou se nós é que estamos tomando ciência delas apenas agora, devido à integração dos meios de telecomunicações e até mesmo pela maior densidade demográfica da área em que estão agindo. Na televisão, vi uma vítima de um desses golpes de vento afirmar que de nada adianta tentar manter-se em pé, nessas ocasiões, pois a pessoa é arrastada e sai voando, planando.
Mas não quero descambar nossa conversa para o cenário das tempestades e tragédias. Prefiro recordar os bons momentos marcados por benfazejas e suaves brisas. No máximo, citar as virações vigorosas que empurram as embarcações com energia. Um dia, em cima de um penhasco sobre o rio São Francisco, na alagoana cidade de Penedo, cismava com a velocidade dos barcos que via percorrendo as águas e com a destreza daqueles pilotos. Acabei convencendo a tripulação de um barco a empreitar comigo uma viagem rio acima. Durante cinco dias, até que as pedras de Paulo Afonso impedissem nossa passagem, navegamos o rio, para mim sagrado. Foi um sonho perfeitamente realizado. Cinco dias de navegação, história e emoção inesquecíveis.
Minhas lembranças às vezes navegam assim, levadas pelos ventos mesmo em dia de calmaria total. São horas em que, mesmo com a alma ancorada, as saudades se põem em movimento. "Movimento dos barcos... Movimento..." Lembro a canção de Macalé com versos de Capinam. A tudo move a brisa, o vento. É a própria manifestação do enigma da natureza. O sopro da vida que nos acompanha desde a primeira vez que o ar nos invade os pulmões até o derradeiro suspiro.
Cá estou eu de novo desviando a conversa para assunto sinistro. Este ano, fiz 54 anos de vida de viração e movimento. Deve ser por isso que a crônica segue tão nostálgica. Sinal dos ventos. Digo, dos tempos. Mas só queria dizer que o ar se deslocando, mexendo com os cabelos, com as velas, com as folhas, com o mundo, é vida. Se me interrogassem, como perguntaram a Manuel Bandeira, o que mais queria além de versos e mulheres, como está descrito no poema Estrela da Vida Inteira, responderia, em vez de vinho, "Vento!... O vento que é meu fraco". E, no lugar de "Evoé, Baco!", evocaria a canção da infância: "Vamos chamar o vento...". E me deixava transportar para a porta de casa, rezando para voar e para que fosse eternamente levado."

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