quinta-feira, 15 de outubro de 2009

CRÔNICA - O Circo


O CIRCO
Uma das grandes alegrias para os meninos de Xique Xique, na década de 1950, era a chegada de um circo na cidade. Na grande maioria eram muito pobres com a empanada já bastante remendada e que sequer tinham uma lona para cobrir o teto. As sessões eram a descoberto que de certa forma se tornava agradável por permitir a circulação da brisa noturna diminuindo o calor para o público. Raramente surgiam circos portando a cobertura superior de lona colorida. A maioria, mesmo contando com cobertura de lona esta se apresentava já bastante gasta pelo uso e com uma cor única geralmente marron claro.
A programação do circo também era de uma simplicidade a toda prova, pois limitava-se a números de palhaços contando piadas no picadeiro, algum trapezista fazendo exibições de balanços e para finalizar um dramalhão ou uma dançarina em trajes de banho requebrando ao som de uma rumba ou um cha-cha-cha. As pessoas que trabalhavam no circo geralmente pertenciam à mesma família e descendiam de um velho circense que sempre ganhara o pão de cada dia deslocando-se de cidade em cidade do interior fazendo exibições que duravam em torno de 30 dias.
Às vezes os circos chegavam por via fluvial, pelos vapores que trafegavam pelo São Francisco e o simples desembarcar das peças já era motivo de distração e lazer para o povo da cidade, pois, já a partir desse momento, toda a comunidade se acotovelava no cais para conhecer os artistas. Outras vezes chegavam por rodovia em 2 ou 3 caminhões velhos e os artistas, em caminhonetas e rurais também velhas. De imediato, davam uma circulada pela cidade para divulgar a chegada. Após conseguirem o espaço e a licença da Prefeitura para instalarem o equipamento, contratavam mão-de-obra local e em pouco mais de 2 dias estava o circo pronto para ser armado no local que melhor servisse aos interesses dos circenses. Até 1950, quando ainda não existia o jardim os circos costumavam ser armados na Praça D. Máximo, mas, após essa data os locais variavam e muitas vezes os circos foram armados na Praça do Mercado ou na Praça Luiz Viana O trabalho de armar se limitava a construir uma cerca circular perimetral de arame farpado e dentro dela, também em forma circular estendia-se a lona lateral. Por dentro da lona lateral construíam-se as arquibancadas formadas por tábuas de madeira apoiadas em estrutura de ferro. Essa arquibancada que a gente chamava de “galinheiro” ficava em volta do picadeiro onde eram apresentadas as funções do circo.
Apesar da pobreza e da repetição dos mesmos programas a cada noite, a vontade que gente tinha era de estar sentado no “galinheiro”, todos os dias, ouvindo as mesmas piadas do palhaço e dando gostosas risadas como se as estivéssemos ouvindo pela primeira vez. Éramos ingênuos, sem muita exigência e qualquer diversão por mais simples que fossem nos trazia muitas alegrias.
Mas, mais pobre do que circo eram alguns meninos e meninas de Xique Xique, principalmente eu, pois minha Mãe não dispunha de dinheiro para pagar o meu ingresso, nem mesmo uma vez por semana, aos domingos, quando a afluência ao circo era maior. Assim, a única maneira que a gente tinha para assistir ao circo no dia que a gente quisesse, era sair “gritando” o palhaço pelas ruas da cidade, à tarde.
Explico como isso funcionava.
Todos os circos, anunciavam o espetáculo da noite, através de um palhaço equilibrado sobre grandes pernas de pau, usando um megafone feito de folha de flandre e acompanhado de um grupo de meninos, que lhe servia de coro e apoio.
O interessante disso tudo era que na divulgação do espetáculo noturno o palhaço de cima das suas longas pernas de pau usava uma cantoria que era comum a todos os circos que aportavam em Xiquexique. Parecia até que eles, os palhaços, tinham cursado a mesma escola pois sabiam "de cór e salteado" a referida cantoria. Assim, após sair do interior do circo e já em plena rua, o palhaço equilibrando-se nas longas pernas de pau e cercado pela meninada, entoava a seguinte cantoria cuja cadência e sequência era a mesma para todos:
- “Ô raia o sol / suspende a lua” ,
e a meninada em torno do palhaço respondia em coro:
- “olha o palhaço / no meio da rua “ .
Às vezes em determina rua, o palhaço parava, anunciava o espetáculo, as principais atrações da noite e, em seguida, voltava à tradicional cantoria:
- “hoje tem espetáculo ?”
E, a meninada em coro respondia:
- “tem sim sinhô”
- “oito horas da noite?”
- “tem sim sinhô”.
- “hoje tem palhaçada” .
- “tem sim sinhô”.
- “Hoje tem marmelada?”
- “tem sim sinhô.”
- “arrocha negrada”
E, nessa hora toda a meninada se matava de gritar.
- “E o palhaço o que é ?”
-“é ladrão de mulher”

“Arrocha negrada”.
E assim o palhaço continuava a percorrer as ruas da cidade, sem um prévio roteiro até que o sol começasse a se por e a penumbra tornasse arriscado o passeio com as longas pernas de pau. Nessa hora o palhaço retornava ao circo, e cada menino do “coro”, recebia um carimbo de tinta na parte de dentro do antebraço, para que pudesse ter acesso ao espetáculo daquele dia. Era a paga por ter ajudado o palhaço na divulgação do circo.
E aí era que estava a complicação. Minha Mãe não permitia de forma alguma que eu acompanhasse o palhaço ou como se dizia naquele tempo “gritasse palhaço”. Dizia ela que aquilo era coisa de vagabundo e de gente que não tinha o que fazer. Filho dela não ia sair circulando por toda a cidade atrás de palhaço para receber entrada de circo. Ai de mim se fosse pego gritando o palhaço. Tomaria uns bolos de palmatória e ficaria sem sair à noite. Ponto final.
Mas, eu, nos meus 8 a 11 anos, não pensava assim e achava que era uma coisa muito boa, pois além de me divertir à tarde “gritando palhaço” ainda ganhava uma entrada no circo, coisa que ela não podia me dar, todos os dia. E, escondido, me apresentava no circo entre os meninos que, naquela tarde iam acompanhar o palhaço da perna de pau. Para que minha Mãe não me visse atrás do palhaço eu evitava segui-lo quando este passava pela Praça D. Máximo, em frente à minha casa, pois com certeza minha Mãe estaria na janela para verificar se eu estava “gritando” o palhaço. Nessa hora eu estava circulando por detrás da Praça D. Máximo para reencontrar a turma no outro lado fora das vistas da minha santa Mãe.
Mas, o pior estava por vir. Era quando eu chegava em casa para tomar banho e jantar que minha Mãe, esperta como sempre, me pedia para ver a parte interna do antebraço. Ela tinha conhecimento do local da marca que a gente recebia quando retornava ao circo após gritar o palhaço.
Após ser flagrado duas vezes com a marca no braço e ter sofrido os castigos dos bolos e de não sair à noite, o jeito foi conversar com o palhaço, pois já era conhecido, para que a minha marca fosse feita na parte superior do braço, quase no ombro, e assim ficasse coberta pela camisa.
A partir daí sempre mostrava o antebraço limpo a minha Mãe e apenas tinha o cuidado de, no banho, evitar passar sabão no local da marca para não apagá-la. Com esse artifício quase todas as noites me deleitava com as atrações do circo.

JMC/2007

2 comentários:

  1. Realmente o circo era uma taração à parte. Agora em junho último, Mário Matos - que tem uma memória fantástica - perguntou-me qual foi o primeiro circo que lá esteve que tinha cobertura na parte de cima? Respondi-lhe que lembrava-me deste circo, até o nome do palhaço (Melão) agora o nome do circo, era exigir muito da minha memória. Mas, o Mário se lembra: Ringley Circo.

    ResponderExcluir
  2. Juarez,
    Acabei de ler o texto sobre o circo que me trouxe boas lembraças e me fez rir muito.
    Lembra-se do circo do palhaço Tabu (que tinha um sapato de madeira com bico bem grande) e da dançarina Chiquita para quem os meninos diziam :" abra a cortina Chiquita!" ?? ( a cortina era a sainha dela feita de tirinhas que encobria o bikini).
    Lembro-me que papai,Antônio Figueiredo, sempre dava as entradas para Jardu e um dia as tábuas do galinheiro (arquibancada) despencou e Jardu teve que ir embora correndo (confira com Tera se foi isso mesmo).Eu também adoraa ir pro circo..mas a situação era igual a sua : sem dinheiro.E me recordo que antes de o circo ir embora,eles vendiam os cachorrinhos "cachorro de balaio" e papai sempre comprava.
    Juá ,me diverti muito esta tarde e li tudo que você escreveu.Sempre estarei acompanhando.
    Beijos,
    Marly Figueiredo.

    ResponderExcluir