domingo, 4 de julho de 2010

Crônica: As Barcas à Vela e os "Remeiros" do Rio São Francisco

AS BARCAS À VELA E OS "REMEIROS"
Juarez M. Chaves

(parte final)


O “remeiro”, também chamado de “vareiro”, era uma das figuras mais populares da beira do rio, formada por homens fortes e calejados que alugavam sua força de trabalho para possibilitar o comércio ao longo do rio. Cada barca levava seis, oito ou dez “remeiros”, que eram encarregados de propulsioná-la, por meio de grandes varas, ou varejões. Tudo se fazia como que cronometradamente, ao som de cantigas melancólicas: dispostos aos pares nas coxias da embarcação, os “vareiros” caminhavam em direção a proa arrastando n'água a ponta pesados dos varejões; aí, então, enquanto firmavam uma ponta no leito do rio, apoiavam a outra no próprio peito calejado e caminhavam em direção à proa, vergando o varejão no esforço de impulsionar a embarcação.
O “varejão”, era uma grande vara de madeira de aproximadamente 4 metros de comprimento com diâmetro de 10 cm, utilizadas pelos “remeiros” para impulsionar as barcas na ausência do vento ou para retirá-la de algum encalho sobre um banco de areia. Para isso colocavam uma das extremidades contra o peito e a outra apoiada no fundo do rio e, utilizando o corpo como alavanca, forçavam o deslocamento da grande canoa. Além da força física que levava ao deslocamento da barca, totalmente carregada de mercadorias, os remeiros também eram grandes equilibristas pois para cumprirem tão dura missão deslocavam-se ao longo da barca, da proa à popa e vice-versa, numa estreita passarela de não mais que 40 cm de largura com grande risco de caírem na água ao menor desequilíbrio.
E o trabalho era pesado. As varas usadas para empurrar as barcas rio acima produziam ferimentos no corpo dos "remeiros". Com uma extremidade da vara apoiada no peito e a outra fincada no leito do rio, era preciso muito esforço para fazer a barca se mover contra a correnteza ou ser desencalhada. O contato da vara com a pele provocava o surgimento de pequenas bolhas, as “cabeças de prego”. Até consumar-se a cura, o "remeiro" novato passava por uma longa e dolorosa iniciação que podia culminar com a aplicação de “toucinho quente” no ferimento. Os "remeiros" veteranos acreditavam que esse “remédio” ajudava na formação do calo que tornaria o trabalho suportável. Às vezes, era necessário segurar o jovem "remeiro" pelos pés e pelas mãos, pois a terapia – uma forma de cauterização – era muito dolorosa. Acreditava-se que o toucinho quente “matava aquelas carnes”, conforme contavam os velhos e "ex-remeiros". Se o ferimento fosse por ter trabalhado a bombordo no dia seguinte o remeiro trabalharia do outro lado, a estibordo. Uma vez formado o calo, o trabalhador passava a ser reconhecido como “remeiro de calo no peito”, ou seja, um marinheiro experiente para a faina das barcas.
Nas viagens rio abaixo, ajudados pela correnteza natural das águas, guardavam as varas e usavam remos que, por serem pesados demais, obrigavam os remeiros a se sentarem aos pares, frente a frente: enquanto um empurrava, o outro puxava o remo, imprimindo maior força. Nas grandes barcas, eram quatro trabalhadores, pois os remos eram ainda maiores. Era uma jornada muito pesada, quase um trabalho escravo, que poderia durar até 12 horas, quando tinha necessidade de “fazer uma madrugada” significando que a faina começaria às quatro horas da manhã.
Os “remeiros” eram contratados por viagem, ou seja, ida ao porto de destino e volta ao porto de origem, somente expirando o contrato de trabalho com o retorno da embarcação ao porto de onde partiu. Possuíam um linguajar próprio para identificar os percursos a serem contratados. Assim quando diziam que iriam trabalhar na modalidade “carreira grande”, significava uma viagem de Juazeiro (BA) a Januária (MG); “meia carreira”, seria o percurso de Juazeiro (BA) a Santa Maria da Vitória (BA), no Rio Corrente; “carreira inteira”, seria o maior percurso pois sairiam de Juazeiro (BA) com destino a Pirapora (MG).
A alimentação do remeiro era bastante pobre e invariavelmente consistia em farinha de mandioca, carne seca e feijão. Como sobremesa saboreavam a “jacuba”, que se resumia numa cuia cheia de água adoçada com rapadura raspada onde as vezes colocavam farinha, cardápio capaz de acalmar-lhes a grande sede e soma de fadiga das viagens.
Esses profissionais do remo também funcionavam como difusores da cultura da região, pois levavam de uma cidade para outra as notícias, os casos, mitos e lendas, as anedotas, os relatos de milagres do Bom Jesus da Lapa, as sextilhas e quadrinhas, toadas e cocos e tudo o mais que fossem aprendendo durante a viagem. Muitos pela natural vocação dos nordestinos eram hábeis repentistas, tocadores de viola, violão e instrumentos de percussão, com os quais faziam o acompanhamento das cantorias nos momentos de folga.
Ainda hoje pode-se encontrar na beira do rio remeiros com idade já avançada que continuam dando o testemunho de quando exerciam seu árduo trabalho, tão relevante para os ribeirinhos, ainda difundindo a poesia e as cantigas, assim como os mitos do Caboclo d’Água, da Mãe d’Água, do Cavalo d’Água, do Minhocão, a lenda da Cobra de Asas presa na gruta sagrada e os milagres do Bom Jesus.

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