sábado, 20 de março de 2010

CRÔNICA: CASTILHO E A VOZ DA LIBERDADE


CASTILHO E A VOZ DA LIBERDADE

Na primeira metade dos anos 1950 alguns comerciantes líderes de Xiquexique criaram uma instituição denominada “A VOZ DO BARRANCO”, instituição de lazer e cultura para os xiquexiquenses, que dispunha de uma pequena rede de alto-falantes espalhada pela cidade e uma modesta sala destinada a projeção de filmes, equipada com um pequeno projetor para as sessões de domingo a tarde e à noite. Um dos sócios dessa entidade, o Sr. Antônio Feliciano de Castilho, coletor federal na cidade, desentendeu-se com os demais companheiros e decidiu sair da sociedade e criar, por conta própria, outra instituição, com os mesmos objetivos, denominada de A VOZ DA LIBERDADE. Essa separação provocou uma violenta animosidade desse ex-sócio com os demais companheiros da Voz do Barranco, seus descendentes e amigos. O desentendimento extrapolou a área comercial e passou a influenciar as atitudes dos parentes e amigos dos cotistas da VOZ DO BARRANCO que, sem motivo aparente, também compraram a briga e decidiram, com algumas exceções, não frequentar os programas da VOZ DA LIBERDADE. No meu caso especial, sendo filho da Profa. Nenem, irmã de tio Custódio, um dos donos da VOZ DO BARRANCO, não tinha direito nem de experimentar um picolé, na época grande novidade para nós, fabricado pela VOZ DA LIBERDADE e vendido em carrocinhas na rua. Ingressar no prédio da VOZ DA LIBERDADE para assistir aos bons filmes lá exibidos ou participar dos programas de calouros animados pelo Sr. Castilho, nas tardes de domingo, nem pensar. A gente tinha que se conformar com os filmes do Gordo e o Magro e o seriado A DEUSA DE JOBA que eram exibidos, precariamente, na VOZ DO BARRANCO.
Para complicar ainda mais a richa, o prédio onde a Voz da Liberdade foi instalada, ficava na mesma rua e quase em frente à sede da Voz do Barranco e, para tristeza da meninada eram instalações superiores e mais confortáveis que as dessa última, pois, além da apresentação de filmes selecionados oferecia como brinde um picolé junto com o ingresso para o cinema, sem falar na sala de projeção bem maior, equipada com grandes bancos de madeira instalados num piso inclinado além de uma sessão de filmes projetados ininterruptamente, novidade para a época, principalmente em cidades do interior.
Quanto aos filmes, o Sr. Castilho a cada semana surpreendia a população com a exibição das melhores fitas existentes no mercado. Naquele tempo existia uma linha regular de avião, fazendo as cidades do vale do São Francisco e que tinha Xiquexique como uma das escalas. Eram nesses aviões que chegavam os filmes da Voz do Barranco e da Voz da Liberdade. Mas, somente os da Voz da Liberdade eram motivos de curiosidade da população que sempre se interessava para saber qual o que seria projetado naquela semana. Lembro-me da promessa feita pelo Sr. Castilho de que o filme O CANGACEIRO, seria exibido em Xiquexique, na mesma data em que estivesse sendo apresentado em Salvador. Era uma promessa ousada mas, foi cumprida e O CANGACEIRO foi exibido na mesma época em que estava sendo projetado na principais cidades da Bahia.
Essa forma atrevida, um pouco raivosa e vingativa do Sr. Castilho administrar a VOZ DA LIBERDADE, ia fazendo com que a nova casa de diversão se tornasse a cada dia a preferida pelo povo principalmente os mais humildes. Dono de uma personalidade carismática era para o povão que o Sr. Castilho trabalhava. Sem abandonar a sua função de Coletor Federal, passou a dirigir as atividades da Voz da Liberdade diretamente para a periferia da cidade. Eram programas de calouros nas tardes de domingo onde as crianças pobres eram agraciadas com modestos brindes pelas participações. Mas, o grande momento acontecia por ocasião das festas natalinas quando ao lado de bons filmes exibidos no mês de dezembro construia dentro da VOZ DA LIBERDADE uma grande árvora de natal ricamente ornada de enfeites e presentes para deleite e admiração da comunidade pobre. Atingia o climax, no entanto, quando, no dia de Natal, enchia de brinquedos a carroceria do caminhão "Brotinho" e saia percorrendo os bairros distribuindo presente com a criançada mais pobre da cidade. Por atos dessa natureza, a cada dia o Sr. Castilho era endeusado pelos pobre de Xiquexique e tido como um benfeitor da pobreza.
Sem se afastar das suas funções de servidor público federal e muito absorvido com a administração da VOZ DA LIBERDADE, ainda encontrou tempo para fundar um partido político na cidade, o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, ´criado por Getúlio Vargas e que na época correspondia ao atual PT. Mas, na área política ficou apenas na fundação do PTB e toda a sua energia continuou sendo dedicada à Voz da Liberdade.
Por tudo isso, a cada dia aumentava a rivalidade e a concorrência entre a VOZ DO BARRANCO e a VOZ DA LIBERDADE com grande vantagem para a esta. No entanto, deve ser registrado que mesmo polarizando, na época, as paixões dos xiquexiquenses não aconteceram atos de vandalismo que viessem a provocar a destruição de equipamentos internos ou externos de propriedade das empresas rivais mesmo com uma concorrência comercial, feroz e desleal entre as duas. A Voz da Liberdade parecia que tinha dinheiro em abundância, pois além das boas instalações físicas, dos bons equipamentos, da pródiga distribuição de presentes e brindes para as crianças mais pobre da cidade, ainda se dava ao luxo de alugar os melhores filmes que eram produzidos no mercado para serem exibidos na longínqua Xiquexique.
Nesse ponto residia a grande questão levantada pela elite financeira da cidade, inimiga figadal do Sr. Castilho e que continuava como proprietária da Voz do Barranco. Questionavam os sócios entre si: Quem era esse Sr. Castilho? Onde ele arranjava tanto dinheiro? Porque um grupo de comerciantes que representavam a elite da cidade não conseguiam fazer o que ele sozinho fazia e muito melhor? De onde era esse senhor?
Como já dito, O Sr. Antônio Feliciano de Castilho exercia na cidade a função de Coletor Federal e, como simples servidor publico não tinha uma fortuna pessoal para, por diletantismo, gastar naquele empreendimento, apenas pelo prazer de dar uma alegria aos pobres da cidade. Alguém deveria estar financiando a farra da Voz da Liberdade. E foi aí que surgiu a famosa questão: De onde é que Castilho está tirando tanto dinheiro para gastar. E, a pergunta era plenamente coerente, pois o volume de dinheiro investido era muito alto. Foi construído todo um complexo envolvendo um bom cinema com equipamento de ultima geração tendo como anexo uma completa sorveteria em condições de atender a toda uma demanda da cidade.
A conclusão era óbvia: Castilho deveria estar desviando o dinheiro da Coletoria Federal de Xiquexique. Dessa conclusão deve ter partido alguma denúncia para os superiores do Coletor, pois, em pouco tempo chega a cidade uma equipe de auditores internos da Receita Federal e de imediato o Sr. Castilho é afastado da função de Coletor. Em poucos dias a Auditoria conclui o trabalho com a descoberta de um grande desfalque na instituição arrecadadora federal. Sem perda de tempo o empreendimento A VOZ DA LIBERDADE é fechado e lacrado, ficando à disposição da Justiça, para posterior acerto de contas e todo o patrimônio dA EMPRESA é judicialmente penhorado para garantir o ressarcimento aos cofres públicos. Após mais alguns dias, ainda com os auditores na cidade, chega o ato de exoneração do Sr. Castilho, terminando assim o reinado do grande empreendimento que foi A VOZ DA LIBERDADE.
Para a população pobre moradora de periferia de Xique Xique, parcela da população que realmente era assistida e prestigiada pelo Sr. Castilho, a demissão do coletor federal, tido como o “benfeitor dos pobres” e o fechamento da VOZ DA LIBERDADE foi um golpe mortal e muitos, apesar das evidências concretas, não acreditavam no que estava acontecendo. Parecia que estavam vivendo um enorme pesadelo, que iria acabar ao despertar, ao raiar do dia, um dia que nunca chegou. Ninguém de bom senso, em Xiquexique, acreditou que o motivo para desviar o dinheiro do erário tenha sido o desejo de devolvê-lo ao povo, como afirmado por Castilho no seu depoimento por ocasião do inquérito administrativo. Acredita-se que, mesmo tendo promovido a alegria dos mais pobres e distribuído entre os menos favorecidos alguns presentes no Natal, além da exibição de excelentes filmes, o crime de furto praticado pelo Sr. Castilho foi realmente movido por um desejo de vingança contra os seus desafetos da A VOZ DO BARRANCO.
Com o fechamento da A VOZ DA LIBERDADE, a VOZ DO BARRANCO, deficitária e que vinha sendo mantida a duras penas, pela elite opositora do Sr. Castilho, também encerrou suas atividades e a cidade passou alguns anos sem uma casa de diversão. FIM

Obs.: A foto que ilustra essa crônica registra o que restou da VOZ DA LIBERDADE. É atualmente um imóvel abandonado e em franca decadência.

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