quarta-feira, 21 de outubro de 2009

CRÔNICA - O CAMPO DE AVIÃO


O CAMPO DE AVIÃO.

Xiquexique, nos anos 50, era uma cidade, mais importante do que hoje, pois, possuía além de um movimentado porto fluvial, onde atracavam os vapores, barcas a vela e a motor, canoas e paquetes, dispunha ainda de um aeroporto, que a gente chamava de “campo de avião”, com dois vôos regulares e semanais com destinos para Salvador e Belo Horizonte.

A empresa aérea que atendia a região era a REAL AEROVIAS S.A, que utilizava as aeronaves do tipo DC-3, do tempo da guerra e fazia a linha de Belo Horizonte a Salvador com escalas nas cidades de Pirapora MG, Januária MG, Carinhanha MG, Bom Jesus da Lapa BA, Barra do Rio Grande BA, Xique Xique BA, Remanso BA e Petrolina PE. Era um verdadeiro “pinga pinga” mas que prestava um excelente e rápido serviço para os barranqueiros tão carentes de meios de transporte principalmente ante a ausência de rodovias e ferrovias. Era o transporte que as pessoas de maior poder aquisitivo, comerciantes e autoridades, utilizavam nos seus deslocamentos até Salvador pra resolverem seus negócios particulares, comerciais ou de saúde. Eram muito seguros os aviões Douglas – DC3, mais tarde substituídos pelos Avros. Nenhum desastre aconteceu nesse período.

Mais tarde, no final dos anos 1940, a Real Aerovias S.A foi substituída pela Nacional Aerovias que até 1969 manteve a mesma linha utilizando os mesmos aviões DC-3 até que finalmente foi comprada pela Varig que explorou a linha por mais alguns anos utilizando, no entanto, aviões maiores do tipo AVRO. Foi fundamental na integração da região. Nessa época o Agente da empresa aérea era o Sr. Humberto Nogueira, uma das pessoas mais importantes da cidade. Na tarefa de vender passagens e despachar bagagens era ajudado por João Gama e Vaninho e as malas eram transportadas para o “campo do avião” numa carroça puxada a burro.

Apesar de um serviço regular e semanal de vôos, o “aeroporto” era uma construção muito modesta e de uma pobreza franciscana, pois se limitava a uma grande área, cercada por estacas de madeira e arame farpado com uma pista de piçarra. A estrutura de apoio era tão diminuta que o maior prédio era representado pela residência do vigia, Zuza do Campo, chamado de “guarda-campo”, encarregado da manutenção da pista (capina e retirada de animais) e da biruta. Ao lado da casa residencial existiam um galpão, toscamente construído e um pequeno depósito. O primeiro a abrigava as cargas e os passageiros e o segundo guardava tambores de combustíveis.

Mesmo com sua humildade e pequenez o campo de avião da minha terra era uma das maiores atrações da cidade não só para as crianças mas, para os adultos também. A gente sempre vibrava e ficava boquiaberto admirando o sobrevôo do avião sobre a cidade a uma altura rasante. A aeronave sempre chegava com pequena altitude, no sentido oeste/leste e, ao cruzar o Rio São Francisco deixava a impressão de que um grande trovão reboando sobre a cidade. Era assim o ronco dos aviões DC-3 veteranos da guerra de 1945 e que naquele tempo prestavam excelentes serviços nos tempos de paz.
A rapidez com que sobrevoava a cidade e a pequena demora no “campo” fazia com que as pessoas que estivessem interessadas em assistir o pouso se antecipassem à chegada da aeronave o que não era fácil dada a inexistência de uma hora determinada de aterrissagem. Era bonito de se ver a destreza do piloto em fazer chegar, suavemente, as rodas do avião ao solo pedregoso e poeirento da caatinga, levantando colunas de pó amarelo que às vezes ficava pairando no espaço quente e sem vento por um certo tempo.

Como Xique Xique não era um local de reabastecimento, a demora se limitava apenas ao tempo gasto em providenciar o embarque de algum passageiro. Nesse pequeno perídoo a tripulação com aquelas roupas bonitas e cheias de medalhas, quase como um conto de fadas, desembarcava e ficava debaixo da asa do avião conversando com algum conhecido e principalmente com as moças casadouras que entusiasmadas com a indumentária e o porte dos pilotos iam, também, assistir a chegada do avião à procura de um bom partido e ver se davam sorte de namorar com algum dos aviadores.

Nós os meninos, também ficávamos bem próximos da tripulação, mas o nosso interesse era que, num golpe de sorte, um dos tripulantes fumasse o último cigarro e jogasse ali a carteira seca. Era uma disputa para ver quem alcançava o troféu, pois de um modo geral eram cigarros de marca americana raros de chegar em Xiquexique. Cada carteira seca de um desses cigarros tinha um valor de mais de 10 vezes sobre as marcas nacionais que circulavam entre os fumantes locais (Continental, Colomy, Astória, etc) e, portanto, iria enriquecer sobremaneira as nossas coleções que fazíamos de carteiras de cigarro secas.

Concluído os embarques a tripulação novamente demonstrando competência e treino fazia a aeronave correr na pista de areia levantando um tornado de poeira que dessa vez cobria toda a cidade ante o empuxo dos motores e virando a direita pegavam o rumo norte, por sobre o Rio São Francisco, seguindo para a cidade de Remanso a próxima escala. Quanto a nós só restava voltar para casa, satisfeito se tivesse tido a sorte de conseguir a carteira de cigarro importado ou então aguardar para estar presente no “campo de avião” no próximo vôo.

Mas, o “campo de avião” de Xiquexique teve também o seu dia de desastre aéreo, pequeno é verdade e sem expressão nacional, para não fugir à regra dos grandes aeroportos. O avião sinistrado conhecido na época como Teco-Teco era um pequeno e velho monomotor, feito de canos de alumínio e lona emborrachada de propriedade de um pessoal que vinha da cidade de Pirapora (MG), com destino ao Garimpo do Rumo em Xiquexique. Numa incompetente manobra na pista de piçarra, o pequeno avião, transportando 4 pessoas, quebrou uma roda, arriou para um dos lados e não mais saiu do lugar. Os ocupantes, ilesos, pegaram suas coisas, abandonaram o pequeno avião no meio da pista e foram embora para o hotel. No dia seguinte, levaram Macilon, famoso mecânico de carro de Xiquexique que tentou consertar o avião, sem sucesso. Em face disso os donos do avião providenciaram a retirada do motor, dos instrumentos de navegação, do rádio e mais alguma coisa de valor e abandonaram a carcaça do pequeno avião.

Esse avião sinistrado permaneceu abandonado por muitos anos no “campo de avião” e era a alegria da meninada que subia na carenagem e fazia de conta que estava pilotando. Com o tempo, a lona se foi rasgando e os canos foram sendo serrados e levados, principalmente pela meninada que usava os pedaços para fazer rudimentares espingardas de chumbo, daquelas de carregar pela boca, que destinava à caçada de pequenos passaros.

As Escolas Reunidas Cezar Zama, onde estudei o primário, era bem pertinho do campo de avião e sempre que tinha alguma aterrissagem em horário de recreio dava tempo para, correndo, ainda ver o poeirão subir da pista da barro, nos momentos de decolagem e pouso. Era uma grande alegria para toda a turma.

Outra das nossas diversões era quando algum figurão decidia visitar a cidade e chegava de avião. Nessas ocasiões, nós meninos alunos da escola pública Cezar Zama, sempre éramos utilizados para, portando bandeirolas, receber os políticos no campo de avião o que fazíamos indo a pé e em fila indiana. Entre as várias vezes que fomos ao campo de avião receber políticos, uma me deixou marcada até os dias de hoje. Lá pelos idos de 1953 estávamos no aeroporto, enfileirados e bandeirolas nas mãos aguardando a chegada de Lauro Farani de Freitas, candidato ao Governo do Estado da Bahia, que vinha a Xiquexique fazer comício, quando para tristeza de todos recebemos a notícia de que o avião em que viajava o candidato caiu e matou todos os seus ocupantes. Foi uma tragédia e, mesmo sendo meninos, voltamos para casa, em fila e em silêncio.

Assim era a nossa vida de menino em Xiquexique. Até o modestíssimo “campo de avião” era para nós motivo de alegrias e tristezas. Mas na condição de menino pobre a gente ia enfrentando junto com as outras crianças todas as limitações impostas pela cidade e procurávamos arrancar diversões das coisas mais simples. O campo de avião era uma dessas coisas que sempre nos causou fascínio e admiração.

JMC/2006

Um comentário:

  1. Juarez,
    estou me transportando no tempo com estes relatos primorosos que você nos presenteia.
    A minha primeira viagem de avião foi em 1959, no alto dos meus sete anos de idade, num DC3 de Xique-Xique até Remanso. Inesquecível, apesar dos 40 minutos de voo, salvo engano.
    A volta foi no mesmo DC3, quando ao aterrisarmos em Xique-Xique, fui até "reverenciado" pela garotada, em virtude da façanha aérea de um pirralho da minha idade.
    Cursei, também, o primário nas Escolas Reunidas Cézar Zama,aluno da saudosa professora Nilza Soares de Almeida.Estudava "as lições" para não repetir de ano, pois, provavelmente, poderia ser aluno repetente da Profa. Honezinda ou, até mesmo, da Profa. Nenen Custódio (risos)) pois, a palmatória dessas duas venerandas mestras, tinha a fama de pesar mais nas mãos de quem fosse aluno relapso.
    A sua didática e clareza, o manejar das palavras, devem ser frutos dos primeiros ensinamentos obtidos nas Escolas Reunidas Cézar Zama. Não duvide !

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