quarta-feira, 10 de março de 2010

REMEIROS DO RIO SÃO FRANCISCO




OS REMEIROS DO RIO SÃO FRANCISCO


Na década de 1950, quando ainda não existiam as barcas a motor, toda a navegação do Rio São Francisco, com exceção dos vapores, era feita utilizando-se a força dos ventos nas velas de pano. As grandes barcas "sergipanas" (foto) eram as responsáveis pelo transporte das mercadorias e todas, além das velas utilizadas quando o vento era propício, levavam, também, grandes varas que era usadas pelos remeiros, homens fortes e tostados pelo sol, para deslocar a embarcação quando o vento era fraco ou quando esta ecalhava em cima de um banco de areia. Nas longas viagens de "carreira grande" eram indispensavel a presença do remeiro.
Nas horas vagas esses homens rudes, acostumados ao trabalho brutal ainda encontravam inspiração para fazer poesia relacionada com o seu cotidiano. Quando eu era menino em Xiquexique, década de 1950, sempre ouvia a "cantiga dos remeiros" e, para mim foi um grata surpresa reencontrá-la no artigo de Antônio Gonçalves publicado no seu livro "Remeiros do São Francisco", a qual transcrevo, literalmente, para conhecimento dos que sentem saudades do Velho Chico.
"Remeiros do São Francisco
Antônio Gonçalves
"As águas do São Francisco estão querendo ir embora, mais as coisas bonitas que nele há, permanecem estáveis. São cantigas, são histórias, são poesias remeiras. Sobre cada lugar, cada cidade, um punhado de histórias que sai da boca dos remeiros. Daqueles que levam a barca aonde querem, subindo ou descendo, de vara no peito. Os remeiros e os marinheiros nos ensinaram muita coisa, pois estes, com aqueles, é que aprenderam a desencalhar os vapores. Os remeiros não choram a desgraça, cantam-na em versos, bebendo cachaça e comendo rapadura, daí a falsa impressão de felicidade entre eles.
Contam que o pessoal de Juazeiro é da lordeza. Primam pelo vestir bem, pouco importa o número de outras necessidades. Em Santana só dá cascalho. Impera a carestia em Riacho (atual Casa Nova); Em Sento-Sé há uma família muito nobre e uma tribo de índios pacíficos, ambas denominadas Sento-Sé. Muita desgraça em Pilão Arcado, onde duas famílias, a Franklin e a Leobas, dispõem de corajosos jagunços. Em Xiquexique há uma família muito grande, cujos membros tem ancas avantajadas. Icatu (atual Biraba) fabrica uma cachaça podre, de que não tomam os remeiros. Queixam-se da Barra, terra do barão de Cotegipe, salvo engano. Quando a barca atraca no porto da Barra, o ladrão, à noite, vem de anzol roubar o cobertor do remeiro. A família dos Marianos, muito rica, dona da vila, não permite a construção de casa de telha, só de palha, em Morpará (Ex-Casa de Palha ou Casa Velha), há lindas mulheres em Bom Jardim (hoje Ibotirama), razão pela qual os remeiros cantam "Bom Jardim da rica flor", Em Santa Cruz (hoje Paratinga), um velho cruzeiro constantemente cheio de urubus. Na Lapa, roubam durante a festa e ficam sem nada fazer até a romaria seguinte. Sempre foram bonitas Carinhanha e Malhada. O posto fiscal é em Jacaré (hoje Itacarambi). Os remeiros que sobem o rio com destino a Januária, consideram-se mais homens que os remeiros que descem o rio, de Januária a Santa Maria e a Barreiras, onde dá uma rapadura que é purgante para os remeiros. Quando nasce um em São Romão, a parteira joga-o à parede. Se cair será ladrão; se se agarrar à parede, feiticeiro. Em Remanso, quando dois se desentendem, amarram-se as camisas, o covarde não pode correr, morrem juntos. O cais de pedra à frente da igreja em São Francisco é obra da natureza: "São Francisco é pedraria".
Em toda comunidade há sempre um poeta. Entre os remeiros também há um, que sabe resumir, cantando:

ABC ou cantiga dos remeiros

Juazeiro é da lordeza, Santana do cascalho, Riacho da carestia, Sento-Sé da nobreza. Remanso da valentia. Pilão Arcado, da desgraça. Xiquexique dos bundão. Icatu, cachaça podre. A Barra só dá ladrão.

Morpará, casa de palha. Bom Jardim da rica flor. Urubu da Santa Cruz. Triste povo da Lapa se não fosse o Bom Jesus. Carinhanha é bonitinha Malhada também é, Passa Manga e Morrinhos, Paga imposto em Jacaré.
Januária é carreira grande, Corrente é meia carreira. Bate o prego em Santa Rita. E caga mole em Barreira.
Januária só dá cachaça Maria da Cruz, algodão. São Francisco é pedraria. Feiticeiro em São Romão.
Pirapora é terra da lama. Quando não é poeira é lama.


(Gonçalves, Antônio. "Remeiros do São Francisco". Folclore. 01 de agosto de 1971)

Um comentário:

  1. Mestre Juarez,

    Parece-me ser essa, que você publicou, a versão autêntica e original do ABC do São Francisco.
    No entanto, o finado João Durin, velho pescador de Xique-Xique, me ensinou outra
    semelhante. Fica aqui o registro:

    Juazeiro da Lordeza
    Petrolina dos Missais
    Santana do Sobrado
    Casa Nova da carestia
    Sento Sé da Nobreza
    Remanso da Valentia.
    Pilão Arcado da Desgraça
    Xique-Xique dos Bundões
    Catú Cachaça Pôdre
    Barra só dá Ladrões.
    Morpará da Pedra de Amolar
    Bela Vista do Lagamar
    Bom Jardim da Rica Flôr
    Urubú da Santa Cruz
    Triste do Povo da Lapa,
    se não fosse o Bom Jesus.
    Carinhanha é Bonitininha
    Malhada também é
    Passa Manga e Morrinhos
    Paga imposto em Jacaré
    Januária Cachaça Boa
    São Francisco da Arrelia
    São Romão da Bruxaria
    Pirapora Carreira Grande
    Correntina Meia Carreira
    Bato Prego em Santa Rita
    Caga Mole em Barreiras

    ResponderExcluir